Morre Cormac McCarthy: o escritor que enxergou o inferno nos homens

Morre Cormac McCarthy: o escritor que enxergou o inferno nos homens

Morreu Cormac McCarthy, dentre todos os escritores vivos, o mais original e eloquente. Uma potência criativa, criadora de mundos e figuras peculiares. Seus diálogos rápidos, suas personagens únicas e sua capacidade de entender assuntos complexos demais para a maioria das pessoas fizeram de sua obra a literatura primordial dos desertos do coração humano. McCarthy investigou a natureza da violência como ninguém. Criou o elemento dramático fundamental da literatura americana: o herói desgraçado e o vilão sobrenatural. Escreveu “Cidades da Planície”, “A Travessia”, “Todos os Belos Cavalos”, conhecidos como a Trilogia da Fronteira, “A Estrada”, “Onde os Velhos Não Têm Vez”, “Meridiano de Sangue”, “O Passageiro” e “Stella Maris”. Os títulos, porém, não representam, nem de longe, a magnitude do conteúdo dos livros. Ali estão homens à margem, terras isoladas do mundo, violência estilizada, discursos avassaladores sobre o homem simples, o soldado, o forasteiro, o peão. Aos 89 anos, ainda escrevendo com uma lucidez assustadora — como prova, veja seus dois últimos livros: “O Passageiro” e “Stella Maris” — McCarthy deixa um legado literário inimitável. “Meridiano de Sangue” é seu “Hamlet”, seu “Moby Dick”, sua obra maior e mais bem feita. McCarthy foi um estudioso de diferentes áreas do conhecimento humano. Em “Meridiano de Sangue”, ele discute geografia, elementos minerais, fauna e vegetação distinta das paragens agrestes que suas personagens povoam. Ele investiga a natureza de seu herói, sua história e a raiz primitiva de suas habilidades. McCarthy, provavelmente, era um grande conhecedor da literatura bíblica e de seus interessantes arquétipos. Sua capacidade criativa subjuga propostas rasas e habita profundidades filosóficas muito mais assombrosas do que podemos imaginar.

“Meridiano de Sangue” é um livro sobre um mundo em ruínas, dos recôncavos de uma região afastada, dantesca, uma proto-civilização. É sobre a terra como uma representação do inferno. Um início num extremo do tempo, longe dos primórdios do planeta, mas que, de alguma forma, reproduz um mundo primordial, caótico, em formação. É essencialmente violento, brutal e intenso. Um clássico de nascença. Épico e canônico.  Segundo Harold Bloom, “Meridiano de Sangue” “é claramente, a meu ver, o maior feito estético da literatura americana contemporânea”. “Meridiano” é um livro sobre algo mais, trata da batalha ancestral entre potências divinas.

No belíssimo texto de abertura da edição brasileira, traduzida por Cássio Arantes Leite, McCarthy cita a frase “a criança é pai do homem”, uma referência direta ao poema “The Rainbow”, de William Wordsworth; e explica que o homem é o fruto de seu comportamento. E, mais profundo, o fato de que o filho precisa superar o pai — tornar-se o próprio pai. Uma concepção bíblica de criação na essência: Deus criou seus anjos no céu e deu-lhes características associadas ao livre arbítrio, pelo menos é o que parece, uma vez que uma guerra nos céus acontece, segundo o livro “Apocalipse”, e parte dos seres celestiais são liderados por um anjo subversivo, desobediente e invejoso, chamado Lúcifer. Ali, também a criatura quer superar o seu criador. A passagem, ampla, diz: “E viu-se outro sinal no céu; me eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. E sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho. E deu à luz um filho, um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono. E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada durante mil e duzentos e sessenta dias. E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e os seus anjos. Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado da terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: agora chegada está a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derribado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite”.

Lúcifer, o anjo caído, torna-se Satanás. A crise nos céus parece ter acontecido em grandes proporções. Uma parte das crias divinas, os seguidores de Lúcifer, precipitam do céu para a Terra, afastados de toda a perfeição da morada de Deus, para vagarem incertos, sob a tutela de seu líder, numa terra ríspida e inferior.

Meridiano de Sangue
Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy (Alfaguara, 352 páginas)

Cormac McCarthy nasceu em Rhode Island, nos Estados Unidos, experiente e premiado, uma das vozes literárias mais relevantes de sua época, entende bem o que fala. É um conhecedor da terra bruta que explora e de suas personagens massacradas e que massacram. O jogo que ele manipula é, de muitas maneiras, a apresentação crua de seu entendimento da proposta humana de um período tenso da história americana e ao mesmo tempo uma exploração do contexto filosófico e psicológico das intenções dos homens frente a eventos extremos tais como a guerra e a dominação.

McCarthy parece entender e dominar o conceito bíblico citado. Nas primeiras páginas de “Meridiano de Sangue” ele declara a origem de seu herói. O texto, também inspirado no poema de Wordsworth, é a sua visão da queda dos anjos, da horda de criaturas excepcionais que povoaram a Terra após a decida fatídica dos mundos superiores. O autor lida com os signos do Apocalipse e com elementos da religiosidade em sua introdução: “Vejam a criança. O menino é pálido e magro, usa uma camisa de linho puída e esfarrapada. Atiça o fogo na copa. Lá fora estão os escuros campos arados entremeados de fiapos de neve e além deles as florestas ainda mais escuras que abrigam uns poucos lobos remanescentes. Sua família é tida por cortadores de lenha e carregadores de água, mas seu pai na verdade sempre foi um mestre-escola. Ele se afoga na bebida, cita poetas cujos nomes hoje estão esquecidos. O menino se agacha junto ao fogo e o observa. A noite em que você nasceu. Trinta e três. Os Leonídeos, era como chamavam. Deus, como choviam estrelas. Busquei o negrume, buracos no firmamento. A Ursa despedaçada. A mãe morta a catorze anos nutriu no próprio seio a criatura que a levaria deste mundo. O pai nunca menciona seu nome, a criança não o sabe. Ele tem uma irmã que nunca verá novamente. Ele observa, pálido e sujo. Não sabe ler nem escrever e em seu íntimo já incuba o gosto pela violência impensada. Toda a história presente nesse semblante, a criança o pai do homem”.

Está ali um dos iniciados de Lúcifer. Uma criatura que nasceu da violência. Um meta-humano. Um anjo caído. Não há segredos em proclamar que as estrelas desceram desde o céu, empurradas pela calda do dragão, e caíram como meteoros, deixando a constelação da Ursa maior desfalcada, mutilada. O líder ainda não está na cena, virá em seguida.

Lúcifer era perfeito, sábio, belo e formoso, de vívido resplendor e reluzente. O filho moldado a semelhança do pai. Algo maior e mais bem feito que todo o resto perpetua sua forma e sua estrutura. Mas não estando satisfeito em ser cria, reivindica o direto, que supõe possuir, de ser o chefe de tudo, o criador de todas as coisas. Mesmo carecendo do absoluto poder intrínseco de fazer as coisas surgirem do nada, assim como ele mesmo surgiu, anteriormente.

A figura central desse texto é a personagem mais enigmática do romance e, em mesma medida, talvez por conta de sua inspirada e bem trabalhada concepção, um dos maiores vilões de toda a Literatura: o Juiz Holden. Em sua primeira aparição, ainda no primeiro capítulo, Holden impressiona pelo tipo e características físicas. “Era calvo como uma rocha e não tinha traço de barba e nenhuma sobrancelha acima dos olhos, tampouco cílios. Ultrapassava os dois metros e dez de altura e continuou fumando seu charuto até mesmo ali naquela casa nômade de Deus e ao que parecia removera o chapéu apenas para sacudir a chuva e agora o enfiava novamente. (…) Seu rosto era sereno e estranhamente infantil. Tinha mãos pequenas.”

Cormac McCarthy: um dos maiores escritores da história da literatura

Um gigante careca, sem pelos no corpo, de rosto delicado e mãos de criança. E sua primeira ação é causar o caos. Deturpa a história de um pastor, ao dizer que é um pedófilo e praticante de bestialismo. Influência toda uma congregação de simplórios a se atacarem mutuamente, sem razão coerente. O Juiz tem enorme gravidade, atrai o caos deliberadamente. Tudo o que fez foi por diversão. A mentira é a sua arma. O Juiz, de forma bem espontânea, não nos faz lembrar uma figura deveras instigante e muito conhecida por todos nós? É ele Satanás.

Holden é Lúcifer, o anjo caído. É, essencialmente, a inveja de Deus e de sua criação. Isso posto, vejamos as provas.

O juiz possui um caderno onde desenha o que vê, na verdade, tudo que lhe interessa. É botânico, geólogo, engenheiro, arquiteto, artista, jurista, filósofo etc. Com uma precisão assustadora, Holden imprime em suas páginas não só as principais características da coisa desenhada, mas sua essência. Depois que as desenha, ele esmaga, destrói, modifica sua forma com sua colossal força. Faz com que o objeto desenhado deixe de existir. Faz assim para as coisas naturais, supostamente criadas pela divindade que odeia, e com os produtos dos homens, que criam à semelhança do criador. Ele não pode fazer isso, não tem esse poder e nem essa prerrogativa. É o anjo caído do Apocalipse. Adquiriu a função de destruir, arruinar. É o mal pelo mal. Não nos moldes de Iago, mas um mal ancestral, homérico. Outro exemplo é o do indiozinho que ele adota por algum tempo. Carrega o menino no cavalo, coloca em seu colo, deixa que brinquem com ele, parece que cuida e estima. Em um momento qualquer, trucida o garoto. Parece que completou seu estudo e a coisa estudada não lhe é mais importante. Descarta como descartou os objetos que desenhou. Não nutre especial apreço pelas coisas da criação. Ou mata simplesmente para dizer, posso fazer isso quando eu quiser. O próprio Juiz é capaz de dizer sua função: “tudo que na criação existe sem meu conhecimento existe sem meu consentimento”.

E ainda, o Juiz é uma figura enigmática. Não é previsível. Está em lugares onde não se pode entender, obviamente, como surgiu, como foi parar lá. Suas aparições são inusitadas. “Alguém afirmara ter visto o juiz nu em cima das muralhas, imenso e pálido sob a revelação dos relâmpagos, marchando pelo perímetro ali em cima e declamando à velha maneira épica.” É um descendente direto das chamas primordiais, do elemento ao mesmo tempo criador e devastador. Sua origem, sem entendimento, pode ser inferida pela sua capacidade de fazer o impossível. Ele é um ser anterior ao mundo e, neste deserto de intolerância e brutalidade, desfila completo e integrado. O narrador tenta entendê-lo: “como um enorme e pesado djim o juiz avançou através do fogo e as chamas o conceberam como se ele fosse de algum modo natural a seu elemento”.

Mais amiúde, não é possível saber se McCarthy gostaria de um paralelo tão específico, o grupo de assassinos, o bando de Glanton, é apresentado de forma inusitada. No povoado de Santa Cruz, descansam a noite em um barracão, onde estão abrigados uma égua e um potro. Após serem deixados, pelo guia, “na escuridão mais profunda e absoluta”, os homens começam a se despir.

“A égua farejava com inquietação e o jovem potro batia os cascos no chão. Então um a um começaram a tirar as roupas de cima, os impermeáveis de pele e sarapes e coletes de lã crua, e um a um propagaram em torno de si um grande crepitar de faíscas e cada homem foi visto usando uma mortalha de fogo muito pálido. Seus braços erguidos puxando as roupas eram luminosos e cada uma daquelas almas obscuras estava envolta em formas audíveis de luz como se sempre houvesse sido assim. A égua no canto oposto do estábulo bufou e recuou com a luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas e o cavalinho virou e escondeu o rosto na malha de veias do flanco da mãe.”

Que criaturas são essas? No completo breu da noite, sem um resquício de luz que os guie em suas ações, os homens brilham espontaneamente. Possuem luz própria, natural. São anjos. Os anjos de Holden. Um resumo de sua pequena horda que precipitou. Os resquícios de uma origem divina abandonada. A prova do que um dia foram e que deixaram de ser por escolha, pela potência da inveja: “formas audíveis de luz como se sempre houvesse sido assim”.

Holden possui habilidades de mágico. É um prestidigitador. É um demônio da contravenção. Não esconde que pretende, sempre, contrariar os preceitos religiosos que determinam o bom livro. O Juiz compara os truques de mágica, com seus mecanismos ocultos, ao controle de um homem sobre o outro: “o juiz fez um meneio com a mão e a moeda cintilou no ar sobre a fogueira. Devia estar amarrada a uma linha sutil, de crina de cavalo, talvez, pois contornou o fogo e retornou ao juiz e ele a apanhou em sua mão e sorriu. O arco dos corpos que circulam é determinado pelo comprimento de suas peias, disse o juiz. Luas, moedas, homens. Sua mão ia e vinha como que puxando algo do punho fechado em uma série de movimentos alongados. Não tire os olhos da moeda, Davy, disse”.

O Juiz gosta do controle. Gosta de subverter. É a sua natureza. Ele conhece a passagem de “Deuteronômio”: “Entre ti se não achará quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro. Nem encantador de encantamentos, nem quem consulte um espírito adivinhante, nem mágico, nem quem consulte os mortos. Pois todo aquele que faz tal cousa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus as lança fora de diante dele”.

À medida que anda entre os homens de Glanton, no mundo dantesco em que circulam, o Juiz impõe seu estilo. Passam por paisagens grotescas e avaliam corpos dilacerados no caminho. Holden, assovia nos ouvidos o pestilento verbo da maldade. Ensina a vencer a luta com seus métodos não-ortodoxos. Impressiona pela capacidade de erguer-se em meio a filosofias e autopromoção. O Juiz se consagra o rei do mundo: “montava com uma grinalda de arbustos do deserto coroando-lhe a cabeça como um egrégio bardo das terras salgadas”. O Juiz parece um Cristo às avessas, doutrina a seu modo. Tem máximas e as executa ao mesmo tempo em que lê as almas de seus pseudo-discípulos: “os homens de deus e os homens de guerra guardam estranhas afinidade”, diz. Ao mesmo tempo em que seus ouvintes o renegam, ele paira com sua compreensão possessiva e discursa sobre o comportamento do outro, que parece dominar mais do que ele próprio. Como numa conversa com Tobin, um ex-noviço que, agora, faz parte da comitiva de Glanton. Depois de serem rejeitadas as suas observações, diz: “o que poderei eu pedir que você já não tivesse dado?”

Segundo Harold Bloom, Holden é um teórico da guerra eterna. Para o teórico Leo Daugherty, uma entidade demiúrgica, um deus do caos ou da guerra. É um profeta da guerra. Sua história começou com a guerra e sua vida depende de sua existência. É além disso um instigador de sua condição, um manipulador de homens para que guerreiem. Um dançarino que se alto-denomina imortal e dança, dança sempre, muito bem e mais, desenhando, em seu comportamento atípico, uma metáfora para esta mesma guerra que cultua, e que discute com competência. Para ele, “a guerra é o jogo supremo porque a guerra é em última instância um forçar da unidade da existência”. A guerra é deus. E nu, grotesco, dança. É observado tocando, magistralmente, seu violino, como o diabo do sonho de Paganini. Dança, pois é um exímio dançarino. Leve, contrariando seus enormes peso e tamanho. É observado por todos, estáticos, como assegura o narrador: “olhou através do fogo para o juiz. Aquela criatura enorme e sem um fio. De olhar pra ele você não diz que dança melhor que o diabo em pessoa, diz? Deus, como o homem dança, a gente tem que admitir”.

Para arredondar o ponto de vista, uma análise paralela para observar o faroeste raiz de McCarthy frente à análise psicológica de outros homens peculiares feito na Literatura mundial. Em um momento do livro, temos uma história contada pelo juiz Holden aos companheiros de comitiva sobre um seleiro que finge ser um índio para pedir esmola, pois seu ofício não lhe rende valor suficiente para viver. É verdade que possui uma família e ela é pobre. Um viajante entra em sua casa depois de descobrir que ele é uma farsa e faz com que ouça seu conselho, rígido, sobre se redimir de seu comportamento equivocado, vergonhoso. O viajante dá dinheiro para a família, mas o seleiro não se contenta com pouco. Ao acompanhá-lo por um trecho da estrada, “para aconselhá-lo quanto ao rumo a tomar e qual não tomar numa certa bifurcação”, ele segue com o jovem até à entrada de uma floresta escura e, com uma pedra, o mata covardemente, rouba seu dinheiro e pertences e o enterra numa cova rasa.

Em “Os Irmãos Karamázov”, Dostoiévski faz algo parecido. A respeito disso, o trecho onde Alieksiêi visita um militar reformado, o Capitão Snieguirióv, vítima da truculência de seu irmão Dimitri, é o ponto central da tese. Nessa passagem, o jovem Karamazóv visita a vítima de seu irmão para oferecer ajuda. É impelido pela amiga Catierina a levar 200 rublos (duas notas irisadas de cem rublos) e fazer com que aceite. Veja, Alieksiêi é um jovem aspirante a padre, reto em sua conduta, um exemplo de homem e de comportamento. Não suporta injustiças, sobretudo essa, gratuita, cometida pelo irmão. Ao oferecer ajuda e ter a impressão de que foi entendido, o homem se volta contra ele, por causa de seu orgulho, e num rompante de dignidade tardia recusa-lhe a ajuda oferecida.

Onde as duas histórias se encontram. Na visão dostoieviskiana o homem é orgulhoso, essa austeridade reside inclusive nos antros mais desprezíveis, na pobreza, na miséria. Algo superior, íntimo, adquirido em algum momento da história, não permite que o homem se incline ao dinheiro recebido, mesmo sabendo que isso o transformará para melhor. O orgulho é o tesouro de Snieguirióv. McCarthy não vê assim. Para ele o homem é essencialmente mal, a violência é sua resposta para tudo. O orgulho do seleiro diz: quem é você para vir aqui e me dizer o que devo fazer. Não existe altruísmo nessa gente, em “Mediano de Sangue”, não há comportamento cavalheiro e digno que evite que as coisas sejam resolvidas com sangue. E no final, o sangue é o grande redentor. Ali, naquele mundo de párias, o Juiz é o senhor. Ele é o manipulador perfeito. Um instrutor para a guerra, pois as almas dos ignorantes são artefatos valiosos, mas facilmente impelido para o mal que cultua.

O Juiz já foi comparado ao Übermensch, de Nietzsche, o super-homem. Ou a Moby Dick, de Herman Melville. É o que querem os seus seguidores incautos. Mas, essencialmente, ele é a criança do poema. Ele quer superar o pai. Quer retornar ao seio do pai? Talvez. Por caminhos torpes. Pela sua dança ritualística. Pela dominação do mundo dantesco que habita e corrupção de todas as almas que encontra? O Juiz é Satanás. Seu confronto final, o anjo do passado. Parece nutrir uma especial rivalidade com o assecla sem nome. A criança, o Kid, há muito superou o mestre-escola, pois a violência é uma doutrinadora eficaz. Mas no mundo não há lugar para dois senhores. Não pode haver dois que entendam a criação e as suas criaturas.

“O juiz pousou a garrafa no balcão. Me escute, homem, disse. Só tem espaço no palco para uma fera, uma e mais nenhuma. Todas as outras estão destinadas à noite que é eterna e sem nome. Uma a uma elas descerão para mergulhar nas trevas diante da ribalta. Ursos que dançam, ursos que não.”

Holden entende quem é. Dança e sabe que nunca vai morrer. É luz e encantamento. O único sobrevivente de uma estirpe em extinção.