Ganhador de 7 Oscars, o filme que todas as pessoas deveriam assistir volta ao catálogo da Netflix Divulgação / Universal Pictures

Ganhador de 7 Oscars, o filme que todas as pessoas deveriam assistir volta ao catálogo da Netflix

A salvação é um encargo que cada um administra da maneira como julga conveniente. É sempre factível, por evidente, que depois de uma vida de erros que implicaram a desdita de muita gente, que um indivíduo se arrependa de coração, tome um caminho diferente e refaça sua vida da melhor forma que conseguir, devotando atenção redobrada a seu comportamento, um tanto paranoico frente à mais pálida chance de replicar as falhas que impactaram negativamente as histórias que tiveram a má sorte de cruzar com sua perversão num momento qualquer. As grandes transformações sociais começam dentro do mais insignificante, do mais desprezível, até do mais abjeto espírito humano, que pode quase nada, ao passo que, no fundo, não tem uma noção muito exata do quão poderoso pode vir a ser. Assim, toca a natureza do milagre eventos em que homens comuns protagonizam iniciativas às quais poucos se apercebem logo que começam a tomar corpo, mas que, a despeito das contingências e dos percalços, vão se espalhando, frutificam, prosperam, até que ao resto do mundo só caiba reconhecer a grandeza desses heróis improváveis, sujeitos exasperantemente comuns que investem — até de um jeito bastante torto — do epíteto de filantropos. Ou apenas grandes amigos da humanidade.

Considerado pelos críticos como o filme mais pessoal de Steven Spielberg, “A Lista de Schindler” relembra a ocupação do Gueto de Cracóvia, uma área de pouco mais de 16 hectares em que milhares de judeus foram obrigados a se amontoar logo depois de declarada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aqui, Oskar Schindler (1908-1974) é retratado como o típico anti-herói — mulherengo, ardiloso, amoral —, mas com tino invulgar para os negócios e, o principal, político, numa boa acepção para a palavra. Homem bem-relacionado com todos os próceres da alta sociedade germânica (leia-se, os líderes nazistas), o pragmático Schindler chegou a se filiar ao Partido Nacional-Socialista, menos por ideologia que por amor a uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Visto como um “bom alemão” apesar de checo, Schindler logo foi autorizado a abrir uma siderúrgica especializada na fabricação de panelas esmaltadas — numa época em que somente os apaniguados de Adolf Hitler (1889-1945) comiam —, para a qual empregava mão-de-obra maciçamente judia, na maior parte das vezes sem qualquer aptidão para o ofício.

Como se quis insinuar no começo desse artigo, Schindler pouco teve de humanista ou, ao menos, de um humanista como esses candidatos a salvadores do mundo aparecem nos livros de História, plenos de suas tantas mistificações, de seus tantos embustes, dos encantos assumidamente falsos e falsificadores que ignoram a razão e passam por cima do bom senso com toda a violência. Spielberg destrincha o caudaloso roteiro de Steven Zaillian, baseado no romance homônimo de Thomas Keneally, de 1982, de modo a repisar o ordinário em seu protagonista, deixando ampla margem para que o espectador dele se aproxime e o repila conforme sua verdadeira personalidade se torne mais evidente. Uma vez devidamente apresentado, o público vai se inteirando do que há por trás das pretensas boas intenções de Schindler, um homem de negócios que, como tal, segue seus próprios paradigmas éticos. Entre outras revelações, Zaillian desarma o mito da suposta magnanimidade do empresário, que viu na mudança para a pequena Cracóvia, no sul da Polônia, a oportunidade de ouro, com a licença do trocadilho meio infeliz, para contratar mão de obra farta e barata, a dos judeus, em troca de proteção legal a esses operários, o que conseguia muitas vezes apenas na teoria. Como se assiste, não eram raras as ocorrências de funcionários vítimas de perseguições sistemáticas por oficiais de baixa patente, que os humilhavam, surravam, espoliavam e quando viam que não poderiam obter nenhuma outra vantagem ou nenhum outro prazer doentio, metiam-lhes uma bala na cabeça. Foi esse o caso de um de seus comandados, idoso, maneta e incapaz de persuadir os soldados hitleristas quanto a sua perícia como metalúrgico.

As mais de três horas de filme ganham muito sempre que Ben Kingsley entra em cena. Oferecendo um contraponto sóbrio e assombrosamente sensato a toda a verborreia autorreferencial de Schindler, irresistível no sorriso meio pornográfico de Liam Neeson, o judeu Itzhak Stern, seu contador e secretário particular, recebe um tratamento digno de Spielberg, que estende por cerca de cinco minutos a sequência em que os dois compõem a tal lista, com os nomes que passaram à História como os judeus Schindler. Bem-intencionado ou não, Oskar Schindler salvou do extermínio cerca de 1.200 homens e mulheres discriminados pelo nazismo por motivação étnico-religiosa, configurando-se em um dos maiores beneméritos da história. Schindler amargara algumas passagens pelo cárcere nazista e perdeu toda a fortuna por causa de quedas na produção — e por sempre gastar mais do que tinha, ávido por manter o padrão de vida a que se acostumara quando da guerra. Todo em preto-e-branco, o único detalhe colorido ao longo da trama é o casaco vermelho de uma menina, figura de linguagem escolhida por Spielberg para fazer menção às vítimas do Holocausto, responsável pela execução de mais de seis milhões de judeus. A menina do casaco vermelho existiu de fato, o nazismo existiu de fato — apesar de muitos brucutus o negarem ainda hoje, malgrado as evidências —, e também por isso o diretor lhe dedica um afeto particular. Nascido um ano depois do fim da Segunda Guerra, o próprio Steven Spielberg, judeu, poderia ter sido um dos imolados pela barbárie nazista, tema recorrentemente abordado pelo cinema. No clássico de Spielberg, a monstruosidade de Hitler é investigada em meandros em que não se havia enfronhado até então. A humanidade agradece, a Schindler e a Spielberg.


Filme: A Lista de Schindler
Direção: Steven Spielberg
Ano: 1993
Gêneros: Biografia/Drama
Nota: 10