O melhor filme de perseguição da história do cinema está na Netflix Divulgação / Dreamworks LLC

O melhor filme de perseguição da história do cinema está na Netflix

Como os imensos organismos ativos que são, plenos de suas complicações e idiossincrasias, sociedades respiram, movem-se nas direções que julgam mais adequadas à conjuntura em que se encontram, avançam um pouco, retrocedem bastante, crescem, desenvolvem-se, prosperam, e, a exemplo de tudo quanto vive, também apresentam suas moléstias, seus transtornos, seus desvios de padrão. Dentre os oito bilhões de células do vasto tecido social que recobre o mundo em nossos dias, nem todas se comportam como o esperado — e esse fenômeno se repete desde o princípio dos tempos, quando os ancestrais do homem pós-moderno descrito por Bauman eram só uns pobres-diabos muito mais felizes do que nós, preocupados apenas em descer o porrete nas feras que se aventuravam a devassar a intimidade de suas cavernas (quando não eram achados por elas antes), caçar, pescar, gerar descendência fértil e morrer, muito antes de atingir a idade da razão de um existencialismo fora de época —, culpa de Deus, do demônio, do capitalismo, do socialismo, da mãe, da escola, da academia, da política e, por obvio, da junção de tudo isso e tanto mais que vem a formar uma pessoa, a começar da própria pessoa. A verdade como se apresenta em sua forma mais linda, nua, sem a pintura das convenções que logo rescende ao doce nauseoso do politicamente correto, é que, simplesmente, não aguentamos a vida como ela é, como ela nos chega, limitada, medíocre, pequena, esvaziada do menor sentido, corroída pelo ramerrão dos dias comuns, das beiradas ao miolo, da periferia ao centro. Essa inadequação fundamental do ser, perfeitamente compreensível e mesmo tolerável, degringola num menoscabo por valores civilizatórios elementares, postura que não se pode admitir sob nenhum ponto de vista, por mais sedutores que pareçam os motivos, por menos óbvias que se mostrem as reparações.

Todo mundo sempre teve necessidade da polícia, uns mais, outros menos — cenário que se liga diretamente às múltiplas realidades que nos cercam. Essa bruxa milenar célebre por seus maus bofes e pela carranca vincada de sulcos escarpados como grotas, ocultos sob os véus impenetráveis da Lei, se encarrega de reprimir delitos, desde os mais pueris até os desabridamente monstruosos, todos os dias, cumprindo sua função como Sísifo, condenado a rolar uma imensa pedra ribanceira só para, em seguida, vê-la despencar no mesmo instante, até a eternidade. Fraudes ao sistema financeiro, sequestros de celebridades e de anônimos, caçadas a psicopatas perigosos e vigaristas de toda espécie: são incontáveis as atribuições das forças policiais, cada vez mais assoberbada de trabalho por causa da obstinação de certos delinquentes. Uma história rocambolesca da crônica policial americana chamou a atenção de Steven Spielberg em 2002, a ponto de inspirá-lo para um novo trabalho. Nos anos 1960, Frank Abagnale Jr. torna-se conhecido, depois de fazer o FBI de gato-sapato, por descontar fortunas em cheques voadores, expressão ainda carregada de simbolismo se se levar em conta o meio por que optou se projetar para voos ainda mais altos no firmamento da ilegalidade. Spielberg viu aí a oportunidade de ouro de emplacar um grande sucesso, e “Prenda-me Se For Capaz” superou qualquer expectativa e quebrou a banca.

A história verídica do rapaz doce, pacato, um filho amoroso de pais que o paparicavam além da conta, que foi médico, advogado e até piloto de avião antes dos dezenove anos parece um delírio, e talvez seja mesmo, daqueles que só a Great America e sua megalomania conseguem produzir. Na verdade, Abagnale nunca passou de um vigarista de raro tino para aplicar golpes cujo grau de sofisticação variava ao sabor das circunstâncias e do ambiente em que se encontrava, farsas tão sólidas, calculadas em detalhes imperceptíveis a olhares leigos, que merecia ostentar na vida além-crime todos esses talentos. O roteiro de Jeff Nathanson se baseou na autobiografia desse escroque, coescrita por Stan Redding, responsável por golpes que lhe renderam milhões de dólares, para contar a história de uma busca encarniçada pelo delinquente mais ousado de que se tivera notícia na América em muito tempo. E é justamente aí que o filme começa, depois de se remover o glacê de psicologismo acerca das razões que levaram Abagnale a abraçar a carreira de estelionatário.

Um dos atores mais versáteis da história do cinema, Leonardo DiCaprio convence na pele de Abagnale nas muitas e loucas passagens de sua vida de crimes, experiência imersiva que conduz o público pela longa jornada do protagonista, do garoto meio almofadinha, retrato fiel do típico filhinho da mamãe, a seu ingresso com toda a pompa no submundo da bandidagem profissional, depois do rompimento com os pais, Frank Abagnale Sr. e Paula, personagens centrais, embora coadjuvantes, noa caminhos tristonhos que Abagnale vai trilhando, com Christopher Walken e Nathalie Baye esgrimando cada cena em que aparecem como se fossem seu canto do cisne, aquela flame of heart, aquele coração em brasa que faz de um filme aparentemente prosaico uma obra-prima. O tratamento que o diretor dá à personalidade torta de seu protagonista, sempre lembrando, ainda que de modo oblíquo, que Abagnale é o que é por causa da flagrante psicopatia dos pais — e eles o eram de fato — arrefece muito, felizmente, com a entrada de mais um tipo fulcral para que se complete o arco maior do enredo.

O jogo de gato-e-rato entre o protagonista e Carl Hanratty, o agente interpretado por Tom Hanks — e não há papel insignificante para Tom Hanks; ele faz miséria ao encarnar o policial sóbrio, meio malvestido e abnegado, doido para botar outro pilantra na grade e marcar mais uma cruz na coronha — sem dúvida consta do top five dos mais eletrizantes do cinema. Aqui, Hanks e DiCaprio batem uma bola redonda num dérbi cheio de lances surpreendentes, ainda que só se confrontem mesmo no terceiro ato. Os dois parecem disputar a atenção do espectador, e conseguem: ora se torce por um, ora se quer que o outro leve a melhor. Os diálogos, cortantes e cheios de humor fino de Nathanson e a trilha sonora do cracaço John Williams, subindo ao fundo sempre que Abagnale leva a termo suas mutretas e some no ar, ainda ecoando na cabeça da gente vinte anos depois, transmitem a sensação de se estar diante de um tesouro cujo valor só se reafirma com o passar do tempo. O crime não compensa, jamais, mas o cinema prova que alguns bandidos têm lá o seu charme — mormente se mudam de vida, como Frank Abagnale Jr.


Filme: Prenda-me Se For Capaz
Direção: Steven Spielberg
Ano: 2002
Gêneros: Drama/Crime/Comédia
Nota: 10