Suspense na Netflix vai te manter na ponta do sofá, olhos vidrados na TV e o coração querendo saltar pelos olhos Alan Markfield / 20th Century Studios

Suspense na Netflix vai te manter na ponta do sofá, olhos vidrados na TV e o coração querendo saltar pelos olhos

A vida em sociedade foi uma medida desesperada do homem primitivo quanto a tentar manter-se vivo em meio a desordem fundamental da natureza selvagem, cruenta, rebelde, austera, inclemente. Sempre irrequietos quanto à possibilidade cada vez mais iminente de desaparecer diante de seus adversários fisicamente muito superiores; sôfregos por manter o domínio sobre o pouco que puderam conquistar no decorrer de uma vida ridiculamente efêmera se comparada ao mais de século que se pode viver hoje; fustigado pela urgência crescente do mundo a sua volta, controlado por déspotas de todos os temperamentos, nossos primeiros ancestrais ensaiaram uma reação a fim de exaltar a ordem e reger minimamente o caos da natureza humana, apenas um reflexo de seu próprio habitat. Uma das funções precípuas do expediente político, sem o qual já teríamos todos  regredido à medonha barbárie do medievo, ou ainda à violência cândida da Idade da Pedra, em que o homem matava “apenas” para preservar-se a salvo dos inimigos que ameaçavam seu território, a pureza de suas mulheres ou a evolução gradativa de sua prole, é justamente dar a cada um a chance de ter seus pleitos mais delirantes submetidos a alguma consideração, ainda que em boa parte das vezes tudo não vá além de uma doce ilusão. Por mais contraditório e um bocado cínico que pareça, aquela tirania dos instintos era tão cômoda que nela permanecemos por quase três milhões de anos, tirando proveito de nossos poderes mais viscerais e pagando por ele um preço sempre alto demais.

É assustadora a capacidade que tem a política de ser fazer maleável e imiscuir-se em todas as esferas da vida do homem. Justamente por ser tão necessária para que consigamos nos entender uns aos outros é que a política entra nos corações e nas mentes como uma personagem meio oblíqua, que nunca tem a menor intenção de se revelar por inteiro, da mesma forma que um prestidigitador, hábil em iludir a plateia sem nenhum recurso mais sofisticado que um sorriso esboçado na hora certa ou a palavra supostamente mágica que se lhe presta de salvo-conduto para atropelar qualquer compromisso com a verdade. “Linha de Ação” (2013) trata dos ardis da política — e dos políticos, por evidente — nos seus mais sórdidos meandros. Allen Hughes é especialista em lidar com assuntos tormentosos, mas neste filme pleno de delicadezas o diretor encontra um meio de levantar umas tantas questões, aparentemente óbvias, abrindo o leque do discurso em outras direções.

“Linha de Ação” não tem nada de mais, e talvez seja esse o segredo. No roteiro de Brian Tucker não existe muito espaço para inovações, mas, assim mesmo, a história de um ex-policial que se torna detetive particular depois de, adivinhe, problemas com álcool e drogas — que degringolam em apuros de natureza bem mais grave, como se assiste numa das inúmeras reviravoltas, no desfecho — tem o condão de despertar o interesse do espectador até o derradeiro lance. O responsável pelo milagre é o magnetismo de Mark Wahlberg, convincente como Billy Taggart, esse homem comum, charmoso em seu desajuste, mas cônscio do imenso mal que já perpetrou a si mesmo (e, é uma lástima, vai continuar perpetrando). Trabalhando sem a parceria com o irmão gêmeo, Albert, Hughes parece muito mais à vontade para explorar campos mais diagonais de seus personagens, e Taggart é o exemplo mais bem acabado disso. Sua relação com a assistente, Katy Bradshaw, vivida por Alona Tal, é muito mais estreita do que a que mantém com a namorada Natalie Barrow, de Natalie Martinez, meio desperdiçada no papel de uma atriz de ascendência porto-riquenha dividida entre o compromisso com o personagem de Wahlberg — que só tem forca o bastante para atravessar os anos por causa de um evento funesto que vai ligá-los para sempre — e a carreira em escalada. A verdade é que Taggart também é um obcecado pelo próprio trabalho. Só isso pode explicar querer assumir o caso de infidelidade conjugal de Cathleen, de Catherine Zeta-Jones, mulher do prefeito de Nova York, numa campanha vale-tudo pela recondução ao cargo.

A partir do momento em que os (ex)amigos Taggart e Nicholas Hostetler, de um Russell Crowe espantosamente seguro, voltam a orbitar o mesmo universo, Hughes prepara a cartada de um contra o outro, como num bangue-bangue revisitado, eminentemente psicológico (ainda que esta seja uma trama de ação), e resguardado pelo glamour sujo da Grande Maçã. Neonoir da pesada, “Linha de Ação” vence pelo cansaço: ao cabo de 105 minutos, ninguém sabe mais o que pensar e, irritantemente, ninguém se importa nada, nada com isso.


Filme: Linha de Ação
Direção: Allen Hughes
Ano: 2013
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10