Você não vai piscar, filme com Glenn Close na Netflix vai te manter paralisado na ponta da cama Aimee Spinks / British Film Institute

Você não vai piscar, filme com Glenn Close na Netflix vai te manter paralisado na ponta da cama

Todos nos deparamos com uma infinidade de vezes em que é fundamental que abandonemos o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refaçamos o percurso, do começo, se necessário. Questões que tocam o mais fundo de nossa consciência, as mais íntimas, as que se depositam nos lugares mais recônditos, as dúvidas, as incertezas, os dilemas existenciais, sempre nos assombrando nos momentos em que precisávamos de toda a serenidade, as inquietudes que tornam a vida um desafio quase inexpugnável: sobram-nos razões para que nos creiamos a espécie mais desventurada da Criação. Em sendo assim, nada mais racional que de quando em quando a humanidade passemos por revoluções, involuções, guerras que dizimam povos irmãos, chacinas, toda sorte de barbárie que só leva à inevitável conclusão de que o homem é mesmo o lobo do homem, de que estamos condenados a cometer os mesmos erros pelos séculos dos séculos, até que nos salvem os bárbaros, trazendo alguma falsa solução com que teremos o maior prazer de nos iludir.

O apocalipse, como todos sabemos, incita a curiosidade de qualquer um que sinta correr em suas veias ao menos uma gota de sangue que não tenha sido maculado pela indiferença e pelo menosprezo com as incontáveis causas que preocupam — ou deveriam preocupar — o mundo inteiro. Filmes dedicam-se a esmiuçar como seria se o gênero humano se flagrasse presa de uma sucessão de cataclismos que, sem trégua, o encalacrasse numa conjuntura que só apontasse para o fim iminente de tudo, sem nenhuma chance de defesa. Essa ameaça aproximou-se perigosamente quando da eclosão da pandemia de covid-19, mal com que, embora enfraquecido, teremos de conviver para sempre, deixando claro que não é exatamente mera paranoia temer inimigos ocultos. Colm McCarthy junta a esse argumento um ponto, esse, sim, desabridamente fantástico, para inserir o público num contexto escatológico, de pouca fé no homem, malgrado restem possibilidades. “The Girl with All the Gifts” (2017) ilustra um cenário de desbalanço biológico, acompanhado, por óbvio, da comoção social que sempre se segue nessas ocasiões.

McCarthy filma a adaptação do romance de ficção científica de M.R. Carey, a cargo do próprio autor, destacando as muitas circunvoluções de Carey em torno da imagem do fim da civilização, impressa com boa margem de acerto sobre duas personagens-chave para a história. Ressaltando o teor sombrio do que vai na tela, a fotografia de Simon Dennis prefere carregar nessas tintas pesadas e com isso obtém um efeito mais imediato, com seu quê todo próprio de lirismo, expediente diametralmente oposto ao adotado por Alex Garland em “Aniquilação” (2018), um dos filmes mais esteticamente prazerosos da história do cinema recente. Se Garland opta por contrapor a beleza plástica do que aparece à retórica soturna do que resta por ser imaginado, o diretor de “The Girl with All the Gifts” tem segurança o bastante para redobrar a aura de pânico neste trabalho, socorrendo-se de duas performances diversas, que se equiparam na excelência da técnica. McCarthy deixa subentendido que, sob a aparência de tranquilidade que se denota das primeiras cenas, já se arma o gatilho distópico a ser ativado pouco depois. Melanie, a protagonista citada no título em português, é uma garota comum na superfície, mas está infectada por um vírus que transforma menininhas adoráveis como ela em zumbis insaciáveis que, claro, não dispensam um bom naco de carne humana malpassada. O entendimento de Sennia Nanua está no ponto, nem a mais nem a menos. No momento exato, o diretor tira dela a essência de nova salvadora do mundo, como se apreende do título original, depois do cerco impiedoso da doutora Caroline Caldwell, de Glenn Close, que rivaliza com Nanua pelo posto de estrela do longa.

McCarthy trabalha a oposição inicial das duas até convertê-la no acordo em prol da continuação da vida na Terra, ainda que este seja um mau negócio para Melanie. “The Girl with All the Gifts” tem laivos de produções-ícone do gênero, a exemplo, de “Dia dos Mortos” (1985), de George A. Romero (1940-2017), mas foca mesmo na esperança como última palavra. Resta saber quem venceria essa parada no mundo real.


Filme: The Girl with All the Gifts
Direção: Colm McCarthy
Ano: 2017
Gêneros: Thriller/Terror/Drama
Nota: 8/10