‘Angels in America’ é o guia para entender o atual conflito religioso no mundo  Divulgação / HBO

‘Angels in America’ é o guia para entender o atual conflito religioso no mundo 

Está na grade da HBO Max a adaptação para as telas da peça teatral “Angels in America”, de Tony Kushner. A versão para televisão foi lançada em 2003 e teve a mesma aclamação que a obra original recebeu nos palcos, no começo dos anos 1990. As interpretações de Al Pacino, Meryl Streep e Emma Thompson são, sem exageros, antológicas. O diretor Mike Nichols fez escolhas perfeitas para contar a história que melhor antecipou e mostrou os conflitos por conta da mistura de política e religião nos Estados Unidos.

A peça foi planejada para encenação em dois dias de espetáculo, dividida em duas partes: “Milênio se aproxima” e “Perestroika”. O espectador dedica dois dias ao espetáculo, em sessões de três a quatro horas. Trata-se de um mergulho na história alucinante que reúne o realismo de personagens portadores de HIV e suas alucinações com anjos e fantasmas da política dos Estados Unidos. Tudo isso no ano de 1985, quando os norte-americanos vivem o delírio conservador e real do presidente Ronald Reagan.

O personagem central de “Angels in America” é Roy Cohn (interpretado por Al Pacino), um advogado judeu que realmente existiu e foi amigo de Reagan e Donald Trump. Mega reacionário e gay, ele havia sido assistente do senador Joseph McCarthy, nos anos 1950, no episódio que levou à pena de morte o casal Julius e Ethel Rosenberg. Todas essas informações históricas são centrais para a trama da peça de Kushner (roteirista dos filmes “Lincoln”, “Munique” e “West Side Story”, de Steven Spielberg).

A versão da HBO Max é dividida em seis episódios. Na trama, o ponto de partida está na descoberta de que Roy Cohn contraiu o HIV. O diálogo dele com o médico que dá a notícia da doença é uma obra-prima de literatura em qualquer época. O inimigo número um dos gays norte-americanos fazia sexo com outros homens, mas se recusava veementemente a dizer que era homossexual. Ao mesmo tempo, o personagem fictício Prior Walter conta ao parceiro Louis Ironson que se tornou portador do vírus.   

As histórias de Roy e Prior são os eixos da história e correm em paralelo, tendo a companhia de uma galeria impressionante de personagens. O advogado reacionário vai ser tratado pelo enfermeiro e ex-drag queen Belize (feito por Jeffrey Wright). Nas cenas do hospital, manifesta-se o conflito dos Estados Unidos em torno da relação das minorias (étnicas, de gênero, classe social). Roy sintetiza a podridão do discurso conservador que se espalhou pelo mundo, e Belize devolve cada agressão com falas cortantes.

O tom realista é intercalado, em “Angels in America”, pelas alucinações dos personagens enfermos. Os delírios de Roy incluem, por exemplo, as visitas do fantasma de Ethel Rosenberg, interpretada por Meryl Streep — ela ainda fez os papéis de um rabino divertidíssimo e da mãe de Joe Pitt, o advogado gay e mórmon que é pupilo de Roy Cohn. Há um ajuste de contas de Ethel com o advogado que a levou para a cadeira elétrica nos anos 1950, sob a acusação de ser espiã dos soviéticos.

Os principais delírios ocorrem com Prior Walter, que agoniza com os sintomas da Aids. Um dos mais hilários é o encontro que ele tem com Harper (esposa de Joe Pitt) em sonhos. Os dois personagens não se conhecem, mas passam a ter altas discussões quando dormem. Prior tem ainda longas conversas com um anjo na forma de mulher (interpretado por Emma Thompson), anunciando que ele será um profeta dos novos tempos. Numa das cenas mais hilárias, eles fazem sexo por meio da troca de energias.

A figura do anjo remete claramente às ideias do filósofo Walter Benjamin. A partir de um quadro de Paul Klee (“Angelus novus”), o pensador alemão definiu a modernidade como uma marcha para o progresso que deixa apenas ruínas pelo caminho. A catástrofe em “Angels in America” é o avanço destrutivo do conservadorismo e uma luta sem tréguas de religiões (protestantes, judeus, mórmons). O conflito religioso deturpa e corrói todo e qualquer horizonte de convivência entre as pessoas.

Numa cena, o advogado mórmon Joe Pitt diz que o presidente Reagan resgatou a fé e a verdade para o povo norte-americano. São delírios desse tipo que Tony Kushner captou em estado embrionário, trinta anos atrás e que hoje estão na boca de políticos pelo mundo afora. Também impressionante são as falas de Roy Cohn dizendo que a disputa pelo poder está nas vagas para juízes da Suprema Corte, e nem tanto na cadeira de presidente na Casa Branca. Tudo muito familiar e estranho para os dias de hoje.

Na HBO Max, os espetadores podem conhecer mais a respeito de figura diabólica de Roy Cohn no documentário “Bully. Covarde. Vítima” (2019). O uso de “valores religiosos” são apenas armas para o controle de dinheiro e de poder. E isso, repita-se, Tony Kushner enxergou três décadas atrás com sua peça teatral. Foi uma época de anjos, como Damiel e Cassiel do filme “Asas do Desejo” (1987), de Wim Wenders. O diretor alemão viu esperanças em seres angelicais que queriam se tornar apenas humanos.