Conversa no Catedral é um dos romances mais experimentais de Mario Vargas Llosa

Conversa no Catedral é um dos romances mais experimentais de Mario Vargas Llosa

A Alfaguara repôs no mercado a obra-prima do escritor peruano Mario Vargas Llosa: “Conversa no Catedral” (581 páginas), de 1969. No prólogo de uma edição publicada em 1998, o Nobel de Literatura conta que reescreveu o romance várias vezes. “Nenhum outro romance me deu tanto trabalho; por isso, se tivesse que salvar do fogo só um dentre os que escrevi, salvaria este”, afirma.

Uma palavra sobre a tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht: beira à perfeição. Traduzir o Vargas Llosa de “Conversa no Catedral”, com seus diálogos intercalados e com aparentes delírios linguísticos — há trechos em que as falas parecem sonhos transcritos por algum surrealista (o escritor certamente não aprovará a interpretação) —, é uma tarefa complexa. Em romances posteriores, o autor mostra-se mais límpido, menos experimental — se há um, digamos, experimento, uma invenção, é de outra natureza: é o uso preciso da literatura para tornar a história mais compreensível (caso de “O Sonho do Celta”, um belo romance tradicional), mais iluminada (iluminista, quem sabe) —, mas, em “Conversa no Catedral”, nós temos, de um lado, a presença, como “fantasmas-vivos”, de Flaubert, na precisão da linguagem, e, de outro, Joyce plasmado por Faulkner (ao lado de Flaubert, uma das grandes influências de Vargas Llosa).

Os temas do romance são vários — poder (política), homossexualidade (sutil ma non tropo), prostituição, amor-desamor, morte, jornalismo (exercício cotidiano de cinismo), além dos pequenos enganos da vida de cada indivíduo. Vargas Llosa resgata, de maneira implacável, o período histórico do presidente-general Manuel Apolinario Odría, que governou o Peru entre 1948 e 1956. Cayo Bermúdez, o ministro do Interior, é uma espécie de Fouché ou Golbery do Couto e Silva (a diferença é que o brasileiro era honesto, em termos de moralidade financeira), o homem das sombras que garante a sobrevivência do regime, por algum tempo — amortecendo greves, comprando favores e negociando nos bastidores com políticos, empresários e generais. Até cair em desgraça.

Ao lado da história, com Vargas Llosa, registrando a mediocridade do governo Odría, que contamina todo o Peru — ditadura é fel que nunca vira mel —, criando uma moral pigmeia, que deixa os homens menores, com uma personalidade amputada e dupla, pode-se sugerir que a linguagem é a personagem dominante do romance. Os personagens, homens — como Santiago, Ambrosio, Bermúdez, Carlitos, Fermín, Odría (que reina, como se fosse uma presença-ausência, pelas mãos de Bermúdez) — e mulheres — como Amalia, Hortensia e Queta —, são meio fantasmais, quase caricaturaturas. Nenhum deles é razoavelmente forte e, portanto, memorável. (Não deixa de ser curioso que, na sua prosa mais recente, Vargas Llosa tem se dedicado e se deliciado com personagens fortes. São personagens inventados ou de carne e osso. Em dois romances, personalidades fortes da vida real, como Flora Tristam e o pintor Gauguin, neto de Flora, que moraram no Peru, e o diplomata irlandês Roger Casement, são precisa e belamente reconstituídos — ganham vida “dialogam” com o leitor. Ausenta-se, porém, nos romances “O Paraíso na Outra Esquina” e “O Sonho do Celta” a prosa experimental que, para usar uma palavra que não agrada um flaubertiano, abunda em “Conversa no Catedral”. “Travessuras da Menina Má” é entretenimento de primeira, às vezes doloroso, mas sempre cativante. Um romance popular, que, se agrada os leitores, desagrada os críticos, sempre muito exigentes. Ao que parece, Vargas Llosa faz um percurso inverso ao de Coetzee, que começou mais tradicional e se tornou, para gáudio dos críticos acadêmicos, um autor mais experimental.)

Leitores de Vargas Llosa e Gabriel García Márquez sabem que o peruano e o colombiano beberam nas águas caudalosas de Faulkner — quem sabe, ao lado de Guimarães Rosa, o filho mais articulado (e, sim, rebelde) de James Joyce —, o escritor americano que, ao “entender” e ao “dissecar” o Sul profundo dos Estados Unidos, sua Irlanda, deu-nos uma literatura altamente qualitativa em termos formais e de conteúdo (misturados, se tornam uma coisa só, com os tijolos cobertos pelo concreto da forma e com o concreto da forma habilmente encoberto pela tinta que deixa marcas quase “naturais”).

Em 1930, Faulkner publicou “Enquanto Agonizo” (há duas traduções no Brasil, ambas de qualidade: a de Hélio Pólvora, quiçá mais literária, e a de Wladir Dupont), um de seus romances mais inventivos, mas ligeiramente soterrado pela forma vigorosa (e mais celebrada) de “O Som e a Fúria”, espécie de resposta americana, ou faulkneriana, ao “Ulysses”, de Joyce. Neste romance, que parece um misto de tragédia grega — com as vozes dos personagens simulando um insistente coro — com os dramas de Shakespeare (que Faulkner amava), notadamente “Hamlet” e “Rei Lear” —, todos as personagens têm suas vozes expostas sob a aparente “isenção” do autor. “Conversa no Catedral” não é uma imitação de “Enquanto Agonizo”, mas a inspiração (assimilada) existe, aqui e ali. O livro de Vargas Llosa apresenta múltiplas vozes, intercaladas ou entremeadas, com assuntos, personagens e diálogos misturados, mas costurados por uma lógica implacável, o que evita que o leitor se confunda. O que se exige, apenas, é que o leitor seja cuidadoso e observador, sobretudo que note que não se trata de uma escrita linear, cronológica. Começo, meio e fim são uma coisa só e, portanto, não estão dispostos desta maneira. Na falta do mote justo, poderíamos definir “Conversa no Catedral” como o romance do vai e vem ou das idas e vindas.

Então, ao leitor recomenda-se apenas que preste atenção na alegria narrativa deste livro, na maneira como a linguagem se torna personagem e contamina a história e as personagens. Ah, sim, não há como esquecer que há três histórias, a da vida pública (a política), a da vida privada (a dos indivíduos) e, por fim, a da aventura da linguagem.

Há até um José Sarney no livro, o Doutor Ferro: “Está em todos os governos há vinte anos”. O Brasil, por sinal, é mencionado algumas vezes no romance. Hernando de Magalhães é o embaixador brasileiro no Peru. Há uma Avenida Brasil. E o desprestigiado e odiado Cayo Bermúdez, como alguns bandidos do cinema de Hollywood, “foge” para o Brasil.

O título em espanhol — “Conversación en la Catedral” — presta-se a um engano. A Editora Francisco Alves e o Círculo do Livro, presumo que seja a mesma tradução, lançaram o romance com o título de “Conversa na Catedral”. Pensa-se por isso, às vezes, que os diálogos entre Santiago e Ambrosio ocorrem numa catedral. Na verdade, “além de bar e restaurante, o Catedral também era casa de encontros”. Por isso, a tradução “Conversa no Catedral” é apropriada.