Haverá explosões no laboratório

Haverá explosões no laboratório

Lembram-se de F., lá da primeira parte destas, digamos, confissões? Pois ela surgiu mesmo para rearrumar o que estava desarranjado. Não nos entendíamos na faculdade que juntos cursamos, eu escrevi, e por “não nos entendíamos” leiam “nos odiávamos”. Até prometemos nunca mais nos falarmos. Ocorre, como bem sabem Freud e o Sete-Peles, que o ódio é primo-irmão do amor. Passaram-se anos, passaram-se décadas, e eis que nos reencontramos num grupo de WhatsApp da nossa turma de Direito, e lá nos percebemos pela escrita; depois, nos percebemos mais ainda, também pela escrita, em outras redes sociais; na sequência, telefones trocados, ficamos nos testando durante muito tempo — ponham um intenso “muito” aqui —, mensagens iam, mensagens voltavam. Eu estava comprometido, ela também. Um dia recebi um ultimato: largue de brincadeirinhas, rapaz. Pois larguei: fomos a uma noite de vinho e jazz e tudo se encaixou, como se todos os anos em que não estivemos juntos tivessem sido um simples treino para o que a partir dali viveríamos. Tudo se condensou. Começou como fascínio mútuo, tornou-se uma grande paixão.

Sim, tudo se condensou, e é aqui que as partes anteriores deste longuíssimo texto começam a fazer sentido (muita coisa boa e algumas ruins, diga-se, porque a vida é assim mesmo). Lembram-se da ousadia que entrevi, aos 6 anos, com S.? Ela se juntou a tudo o mais que me veio de uma vida amorosa errática, numa espécie de quintessência de traços de caráter que estavam, então, prontos a servir milady. A ousadia que me veio por S.; as dores de coração sentidas, também fisicamente, por G.; o ato ridículo de ser pavão que surgiu com L., de quem também me vieram sensações, flagrando-a sob o chuveiro, que ainda tenho com F. e, obviamente, hoje as sei compreender. Outras coisas se condensaram na epifania que foi F.: os mecanismos físicos em pleno funcionamento e dos quais B. me fez ter um vislumbre; o sentimento de posse que me chegou por T., posse que pode se mostrar de forma suave, como que para soldar as amarras soltas de um casal, nunca para se tentar subjugar a pessoa amada; e a sensação de “carpe diem”, quando estou com F., que me chegou pela tragédia de R. Sim, P. me ensinou a olhar o futuro com F.; B. trouxe a sabedoria para mirar este futuro sem receio do passado; de E. sobrou-me a ideia de que o amor deve ser levado a sério, mas nós mesmos devemos nos dar poucos ares de importância. Com outra R. aprendi que deveria conquistar F. diariamente (e depois desaprendi…); outra F., a sansei de trinta anos atrás, me deu alguma esperança no renascer de grandes amores; H. me deu forças para tentar não perder a mulher amada de vista. E I.? I., claro, me ensinou a não ter medo de mulheres fortes (e a F. de quem agora falo tem a força de um furacão grau 5, com ventos de 250 km/h). C. me faz hoje também recuar: não devo ser cruel como fui com ela. F. — mais uma — fixou em mim a certeza de que atitudes adiadas são o túmulo do amor. L. e A.L. me legaram um couro grosso (mas não muito…) para as impiedades femininas, e R. me foi uma dolorida aula de poesia que, tristemente, se repetiria, como veremos, com F.: “De repente do riso fez-se o pranto/ Silencioso e branco como a bruma/ E das bocas unidas fez-se a espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o espanto”. O que mais? Muito, muito mais se amalgamou para aquela que era esperada sem eu o saber. Infelizmente, na sequência da minha reincidência em erros, fui vil e mau, talvez como o Herzog de Saul Bellow (e ela teve também a sua cota de maldade e um toque de vileza, porque humana é):

“Retomando seu autoexame, admitiu que tinha sido um mau marido — duas vezes. Daisy, sua primeira esposa, ele tinha tratado sordidamente. Madeleine, a segunda, tinha tentado arruiná-lo. Para seu filho e sua filha ele era um pai amoroso, mas ruim. Para seus próprios pais, tinha sido um filho ingrato. Para seu país, um cidadão indiferente. Para seus irmãos e sua irmã, afetuoso, mas remoto. Com seus amigos, um egotista. Com o amor, indolente. Com tudo o que era brilhante, embotado. Com o poder, passivo. Com sua própria alma, evasivo.”

Contudo, aprendi a reunir forças e soube reconhecer erros: qualidades havia aqui, penso eu; entretanto, F. ressurgiu e se foi, alegando incompatibilidades. É certo que, como católico, tenho pecados não resolvidos; também é certo que, sendo mais um entre 8 bilhões de seres humanos, carrego fracassos, uns tantos arrependimentos, bastante ressentimento (não amargura) e alguns acertos e sucessos; por fim, também é verdadeiro que uma condensação como a que narrei não se faz sem elementos tóxicos. Sou míope e F. tem presbiopia; a minha miopia ressalta os dotes de F., porque seus defeitos ficam mais distantes; a presbiopia de F. mostra em letras embaçadas as minhas possíveis qualidades, porque qualidades se enxergam mais próximas, justamente a parte da visão que a presbiopia afeta. Não tenho conseguido que ela use óculos corretivos, e isso dói — F., então, além de tudo o que nela se condensou vindo do meu passado, também me mostrou que existem alegrias e dores extremas e concorrentes num curto espaço de tempo. Se alguém souber de óculos corretivos que funcionem bem, mandem cartas para o editor — correrei léguas para os conseguir. 

Há mais, sempre há mais: ela é daquele tipo que veio feliz de fábrica; já eu vim ao mundo com excesso de algumas arruelas que deveriam ser ajustadas para uma sintonia mais afinada da minha melancolia. Vivo com a tarefa do aprendizado diário de como morrer, como escreveu Rilke (agora me foge a autoria da frase: fica sendo Rilke mesmo). Não me entendam mal, não sou infeliz; antes, a certeza da finitude terrena e a minha fé católica me deram certo senso de “carpe diem”, “matamos o tempo e o tempo nos mata”, “ninguém se molha duas vezes no mesmo rio”… Isso tampouco nos atrapalhava, a bem dizer; o problema é que quem anda na vida sempre a vendo como um vale verdejante costuma se irritar quando nota que entramos às vezes em pistas sem guardrail, nenhum asfalto antiderrapante e ainda manobrando um veículo com freios defeituosos e com o airbag sem ter passado por qualquer recall. Eis o amor.

Talvez F. não se dê conta de que não são três ou mesmo duas vezes que amamos assim durante uma vida; sim, narrei amores vários nos textos anteriores, mas ressalvei que havia também preguiça, costume e até puro desregramento. Não eram exatamente amores. Tenho defeitos inumeráveis; uma virtude, contudo, eu me concedo, se me permitem: sei reconhecer o amor e a amizade, talvez não saiba lidar com o amor, mas, sim, eu o reconheço. Hoje creio que porventura se deva amar com um olho aberto e o outro meio fechado — será? Outra solução? Tentar sempre, cotidianamente, uma solidificação do que se condensara em mim para servir a ela, para servir a nós, agora já sem os elementos ruins que vieram ao lado dos bons. Haverá explosões no laboratório, mas sempre se pode recomeçar; outras falhas no processo ainda acontecerão, e recomeça-se ainda mais uma vez. Em rima soante, balões volumétricos trincarão, tubos de ensaio cairão, Beckers irão se chocar, buretas não serão encontradas, funis de bromo pifarão, pipetas se mostrarão imprecisas e almofarizes e pistilos serão apenas nomes bonitos de objetos que não saberemos usar. E daí? É obra para a vida toda — obra complexa e, todos nós o sabemos, também gostosa de se fazer. É uma obra: isso diz tudo. Ou talvez a solução seja esquecer tudo isso que narrei e apenas dizer o que dela antes ouvi, alterando, claro, o vocativo: largue de brincadeirinhas, mulher, e lembre-se que, nas mulheres, o amor vem par droit de naissance; nos homens, o amor é tempo e aprendizado, droit de conquête (obrigado, Nelson Rodrigues).

Sobrei com tijolos caídos, tijolos que não se juntam sem companhia. O que virá agora? Para uma empreitada assim, é necessário que haja duas pessoas em acordo mínimo (desacordos são impossíveis de evitar), uma com régua, a outra com compasso; uma fazendo a argamassa, a outra (re)assentando os tijolos. Mas parece que me vejo só em meio ao que desmoronou. Tudo bem, tudo bem, sobrevive-se, no entanto… Posso assegurar que meu cavalo não fala inglês, mas me permitam cantar com o nosso Chico: “Agora era fatal/ Que o faz de conta terminasse assim/ Pra lá deste quintal/ Era uma noite que não tem mais fim/ Pois você sumiu no mundo sem me avisar/ E agora eu era um louco a perguntar/ O que é que a vida vai fazer de mim?”. E, como no poema de W.H. Auden, diante dos perigos do mundo, agora é cada um por si (no caso do poema, a guerra separa um casal; já eu uso os versos mostrando que qualquer ruído, a depender de sua interpretação, pode causar separações): “Ah, o que é aquele barulho que vibra nos ouvidos/ Lá em baixo no vale, a rufar, a rufar?”. Sim, eu ouço a negativa a rufar, a rufar, a rufar…

Pergunto-me por que me exponho assim, em três longos textos. Eu precisaria de um Freud para explicar esta ânsia de berrar; é possível que tudo não passe de um grito como resposta a uma afasia anterior sobre muitas palavras que foram por mim ouvidas e nas quais me reconheço somente em parte. Mais importante (e triste), adivinho talvez o futuro: “Starts with ‘a’ and ends with ‘z’, that’s the alphabet for me”, como na música infantil que usavam para nos ensinar inglês. F., R., M., recomeçarei. Todo um caos que não desejo irá se reiniciar. Aceito-o; todavia, haverá ainda quem possa reorganizar o que se desarranjou novamente? Espero também que não haja ódio em F., porque o ódio pode ser muito mais voluptuoso do que o amor (obrigado, Nelson, de novo). Não sei; por ora, resta-me encerrar com um pungentíssimo “vale, unice!”, sabendo que, se todos nós temos na vida três ou quatro seres decisivos (Nelson, Nelson…), em F. os quatro ou cinco da minha própria vida se reduziram, por bons anos, a ela. Sim: vale, unice!

*Repito, uma última vez, a advertência final que fiz na primeira parte deste texto. Li, muitos anos atrás, uma crônica ou um ensaio chamado, penso, “Them”, e com certeza há ecos dele neste meu “Elas”; ou talvez o ensaio fosse em português e fosse também intitulado “Elas”. Como acumulei horas e horas de leituras de ensaios, não o conseguiria localizar hoje; faço aqui, então, esta confissão de influência ou mesmo — será? — de um quase plágio, pois aquele texto não me ficou na memória e dele apenas guardei a sua ideia geral.