Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema está na Netflix

Boa parte da pessoa que nos somos vai se cristalizando durante a infância. As crianças frágeis e indefesas congeladas em fotos de milênios passados guardam a essência do que precisamos para enfrentar o futuro, a começar das tão necessárias reservas que a vida nos impõe. Viver — ou mesmo apenas existir — parece um flagelo em muitas ocasiões; o mundo nos oprime, estraçalha nossos sonhos, enquanto o tempo, sobranceiro até diante do mais poderoso dos mortais, passa inclemente, lançando-nos ao rosto nossa monumental insignificância. Somente ao alcançar um determinado ponto da longa caminhada que ninguém pode empreender por nós, damo-nos conta de que tudo de quanto precisávamos para sermos felizes tivemos um dia, e esse dia invariavelmente se passou em nossos verdes anos, nos momentos em que as preocupações nunca conseguiam se fazer maiores que a esperança; os sofrimentos, seja por que motivo tão grave em nossa régua tão diminuta, prestavam-se sempre a degrau para os aprendizados que nos acompanhariam pela vida afora; e as vicissitudes já consumadas logo eram destituídas do trono de arrogância e desespero de onde miravam nossos pais, aqueles adultos tolos obstinados em nos fazer apreciar tudo pelos olhos duros da tristeza que nunca nos assaltara até então.

A infância é o porto seguro do homem, o lugarzinho acolhedor e mágico para onde vamos quando queremos algum alento diante dos reveses da vida. As coisas que nos acontecem ao longo dessa fase especial da vida ficam, para o bem ou para o mal, sinalizando como iremos lidar com esse ou aquele problema, ou nos dizendo de que forma reconhecer uma situação favorável a fim de nela continuar pelo maior tempo que pudermos. O jeito como passamos a infância, por evidente, define boa parte do que será nossa vida dali a poucos anos, no instante em que a fantasia dá lugar à realidade em seu estado mais bruto e viver se transforma numa luta às vezes sangrenta, durante a qual vamos nos ferindo e nos habituando aos golpes, exatamente como nos disseram que teríamos de fazer caso quiséssemos ser respeitados. Os protagonistas de “A Lagoa Azul” (1980) têm essa etapa de sua história suprimida, e não se pode dizer que para eles o estar no mundo se lhes apresentou como uma felicidade sem fim. Um dos símbolos imagéticos mais fortes de uma geração, o filme de Randal Kleiser deve ser apreciado como, em essência, é — mormente por aqueles cuja idade regulava com a daquele par de alminhas ingênuas, subitamente forçadas a sobreviver num éden de beleza sem comparação, mas igualmente ameaçador —: um alerta sobre a falta que a civilização faz, e em que proporção o meio selvagem nos favorece.

O roteiro de Douglas Day Stewart conserva muito do que se encontra no romance homônimo do irlandês Henry De Vere Stacpoole (1863 –1951), publicado em 1908 e já adaptado para o cinema pelo sul-africano Dick Cruikshanks (1874-1947) em 1923. Essas histórias que mesclam em doses quase coesas o lado bom do homem formalmente educado e sua imersão, ainda que acidental, num habitat ao qual não pertence e que o poderia arruinar — como já havia ocorrido com desabrida violência em “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg —, sempre despertaram sentimentos controversos em plateias do mundo inteiro. Aqui, Richard e Emmeline, os pequenos náufragos que sobrevivem a um infortúnio em alto mar — sempre me perguntei o que faziam aqueles dois desgraçadinhos junto a um bando de marmanjos num navio meio sucateado em algum ponto do século 19, mesmo acompanhados pelo pai do menino — tocam lugares perturbadores e obscuros na alma de quem consegue envolver-se com a história. Com o intuito de desempenhar uma função bastante nobre no enredo, mostrada em toda a sua crueza na virada do segundo para o terceiro ato, vai com eles o marujo Paddy Button, de Leo McKern (1920-2002), que os acompanha enquanto são vividos por Glenn Kohan e Elva Josephson. Numa bela passagem submarina, assumem Christopher Atkins e Brooke Shields, no melhor de suas formas — a nudez explícita (inclusive do personagem masculino), sem qualquer conotação sexual, é uma das marcas do longa. Richard e Emmeline desvendam os principais enigmas da vida — o nascer, o instinto de sobrevivência, o amor, o sexo, a constituição de uma família, a concepção e o além-mundo — com os parcos conhecimentos que já trazem consigo, valendo muito mais a sabedoria que instituem naquelas condições tão adversas e tão desafiadoras no que têm de novas possibilidades. Tanto que o desfecho apresenta uma surpresa, prova de que o meio é uma interferência em nossas vidas contra a qual, como no caso deles, é inútil lutar.


Filme: A Lagoa Azul
Direção: Randal Kleiser
Ano: 1980
Gêneros: Drama/Aventura/Romance
Nota: 8/10