O filme perfeito para uma sessão de cinema em casa acaba de chegar à Netflix Divulgação / Sony Pictures

O filme perfeito para uma sessão de cinema em casa acaba de chegar à Netflix

A condição da mulher na pós-modernidade talvez seja o emblema máximo quanto a demonstrar na prática as mudanças pelas quais o mundo passou no último meio século. Se até meados dos anos 1970 ver uma mulher em cargos de chefia era como deparar-se com um marciano típico, verde e com antenas brilhantes, hoje não nada mais corriqueiro que verificar que por trás de megacorporações, do comércio varejista aos bancos públicos, existe um par de sapatos de salto alto, batom e terninhos de grife adornando cérebros privilegiados. Essas guerreiras da selva de pedra foram conquistando seu espaço não sem boa dose de sacrifício e uma apurada inclinação para a disputa, porque se sabiam em franca desvantagem. Mulheres sempre trabalharam — as mulheres sem pais ou maridos que as respaldassem financeiramente, em especial —, mas de cerca de cinquenta anos para cá, desde a massificação do uso de anticoncepcionais, criados dez anos antes, a população feminina pôde, afinal, ser dona do próprio corpo e, a partir de um hábito tão prosaico, mas revolucionário, mulheres tornaram-se capazes de levar adiante seu pleito e conquistar os postos de liderança para os quais estavam se preparando desde o princípio dos tempos.

Intelectuais como a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) deram colaborações inestimáveis para o fortalecimento da causa da mulher. Trabalhos a exemplo de “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, e “A Mulher Desiludida” de 1967, versaram sobre os desafios de ser mulher num mundo de homens, ou sob a forma de ensaios e elaborações retóricas, como no primeiro, ou a partir de histórias curtas em que personagens femininas despojam-se de vaidades ao dividir com o leitor as agruras de casamentos infelizes. Tudo isso parece delírio frente às profundas transformações protagonizadas por mulheres ao redor do mundo, mas só elas sabem o que já passaram — e passam ainda. “As Panteras” (2019), por natural, não tem a menor pretensão de se lançar à seara espinhosa da discussão sociocultural acerca da evolução de Marias e Clarices, embargada de tempos em tempos pela insensibilidade de homens e mulheres pouco esclarecidos. Entretanto, é impossível não encontrar no filme da diretora e atriz Elizabeth Banks traços ainda que rudimentares da pena de Beauvoir, mormente no jeito de estar no mundo de suas personagens centrais, um trio de lutadoras sem paciência para machos inseguros com a própria virilidade em declínio.

O filme dispõe de recursos estilísticos, como os figurinos extravagantes de Kym Barrett ou o cabelo e a maquiagem a cargo de Camille Friend, para capturar a atenção do espectador de imediato, e o consegue com tranquilidade. Produções como essa, cujo enredo é já amplamente conhecido há tanto tempo, têm mais é de caprichar nos detalhes, uma vez que em tudo o mais existe tão pouca margem para inovações. Já o roteiro de Banks, coescrito com Evan Spiliotopoulos e David Auburn, serve mais como o balão de ensaio para que a diretora se aventure em trabalhos de fôlego mais profundo, e pelo que se assiste nesta segunda releitura do seriado americano que virou febre na década de 1970, ela tem futuro. “As Panteras” de Banks está rigorosamente sintonizado com os tempos de patrulha intelectual e de costumes da atualidade, muito diferente do que se nota na primeira transcrição, levada à tela por McG em 2000. Para princípio de conversa, quem espera sequências em que as três protagonistas, uma loira e duas morenas, jovens, belas e lascivas, apareçam saindo do mar de biquíni ou pulando de cama em cama — tudo pelo bem do serviço, claro —, que contenha seu entusiasmo. O enredo conserva a ação em boa medida (malgrado o filme se arraste e se perca ao longo de quase duas horas), mas Sabina Wilson, Jane Kano e Elena Houghlin são moças de família. Kristen Stewart, Ella Balinska e Naomi Scott se defendem bem nas cenas que lhes exigem uma dose adicional de esforço — as de abertura, com a Sabina de Stewart dando a entender que está caidinha por Jonny Smith, o empresário meio pilantra de Chris Pang, são sensacionais —, sem muitas surpresas depois. Stewart, Scott e Balinska, nessa ordem, vão se provando as intérpretes certas para seus respectivos papéis, destacando-se a atuação da segunda, eminentemente técnica, sem nenhum prejuízo da emoção. A inocência de Elena, que muitas parece ter caído de paraquedas em meio às outras duas, cobras criadas da espionagem internacional, chega a ser comovente, como se tivesse vindo direto de um conto de fadas — como sua Jasmine em “Aladdin” (2019), de Guy Ritchie.

A reviravolta de “As Panteras”, o feijão com arroz bem-feito e bem temperado, vem, como não poderia deixar de ser, pelas mãos do veterano Patrick Stewart e seu tão ambíguo John Bosley. Até as mulheres empoderadas do nosso tempo estão sujeitas aos ardis de tipos mais velhos e também mais perigosos.


Filme: As Panteras
Direção: Elizabeth Banks
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Aventura/Ação
Nota: 8/10