Delirante, estranho e perturbador, novo filme da Netflix vai te chocar por 100 minutos Divulgação / Netflix

Delirante, estranho e perturbador, novo filme da Netflix vai te chocar por 100 minutos

Ser velho é refinar um pouco mais a solidão fundamental da vida. Começamos e acabamos sozinhos; o intervalo entre um e outro momentos é o tempo que nos sobra para completar a jornada com qualquer coisa que valha a pena, algum sentimento mais forte, emoções verdadeiras, paixões que nos arrebatam, amores que nos fazem serenar. As horas de êxtase para uns privilegiados são muitas vezes tantas que se começa a pensar que viver será sempre assim, essa festa, esse cruzeiro interminável por um mar de rosas com ondas fortes de alegria e ventos de novidade, cálidos, mas também refrescantes. Depois, mas antes do que se espera — até porque a viagem dura muito menos do que se supõe —, até a mais sonhadora das criaturas está integralmente convencida de que o prazer é mesmo das experiências mais fugazes a que o homem está sujeito, corre ainda mais rápido que o sobe-e-desce dos ponteiros e com a mesma generosidade com que surge das circunstâncias mais inusitadas, some de uma vez, deixando só um fumo de saudade. E numa noite passam-se séculos.

Ter de encarar a senectude num mundo de jovens, pensado para jovens e governado por eles é, certamente, um desafio e em muitas circunstâncias uma afronta. Não por acaso os que vieram primeiro vão se ressentindo da força, da beleza, do raciocínio límpido e rápido de gente que, com sorte, há de chegar ao ponto em que estão agora, e com mais sorte ainda, o farão lúcidos, saudáveis e com disposição de sobra para se levantar todos os dias de sonos entrecortados por pesadelos e crises de apneia, dirigir-se ao espelho um tanto mofado do banheiro e contemplar a própria decrepitude, invejando e imprecando mil pragas aos que não envelheceram ainda. É essa aura de rivalidade o que mais salta em “Lar dos Esquecidos” (2022), espécie de crônica social mascarada de terror, em que o alemão-romeno Andy Fetscher discorre sobre as aperturas de um grupo de velhinhos nada fofos que não aguentam mais o desprezo do resto da humanidade, juntam a energia que conseguem e colocam em marcha uma vingança sangrenta, resultado da observação minuciosa do tratamento cruel de que são vítimas desde que deixaram de ter valor comercial.

“Lar dos Esquecidos” é um filme estranho. Ella, uma mulher de meia-idade, bonita e algo hiperativa, volta a sua cidadezinha natal no interior da Alemanha para assistir ao casamento de sua irmã caçula, Sanna, de Maxine Kazis. Melika Foroutan é a grande mestra de cerimônia aqui; naturalmente, numa história sobre velhos que se insurgem contra filhos e netos, caberia a alguém que estivesse no meio da estrada, em algum ponto mais ou menos sabido entre um lugar e outro, a condução da narrativa, e Foroutan dá conta do recado com galhardia. O diretor-roteirista faz desse tal casamento a ocasião certa para que Ella e Sanna voltem a procurar seus decanos, largados num asilo que se vai revelando somente um depósito de mulheres e homens imprestáveis, encarados como objetos sem serventia, tolerados com alguma paciência e pouco afeto até que deles se encarregue a morte. Sequências como a que mostra Aike, o patriarca vivido por Paul Faßnacht, em total isolamento, amarrado ao leito para que não tombasse, segundo a explicação da enfermeira, ao mesmo tempo que cortam o coração, servem de prólogo ao nonsense que vem logo depois, quando os internos do asilo se transformam em zumbis superpoderosos, vingativos e inclementes, que vão com tudo para cima de seus descendentes. O inevitável paralelo com a epígrafe, na apresentação do longa, sobre uma lenda escandinava que relata o embate entre velhos furiosos com seu estado e a juventude, produtiva, cheia de viço e no comando de tudo, adquire o sabor agridoce de uma ambiguidade nada simples. Ninguém é capaz de depreciar aquelas senhoras e senhores aparentemente frágeis se realizando ao barbarizar a própria família pouco zelosa.

Fetscher compõe um filme delirante que oscila do genial para o tolo no espaço de um instante, mas que jamais pode ser acusado de tedioso, vulgar ou, como sói acontecer em se tratando de produções dessa natureza, politicamente incorreto. Decerto o adjetivo que melhor define “Lar dos Esquecidos” é mesmo “estranho”, e dessa estranheza nascem todas as suas qualidades e defeitos. Como se dá com a vida — conclusão que só se atinge ao cabo de muitas décadas.


Filme: Lar dos Esquecidos
Direção: Andy Fetscher
Ano: 2022
Gênero: Terror 
Nota: 8/10