Denso, espirituoso e absolutamente devastador, filme que passou despercebido na Netflix não te deixará respirar

Denso, espirituoso e absolutamente devastador, filme que passou despercebido na Netflix não te deixará respirar

O respeito às diferenças é a pedra fundamental de qualquer sociedade que se pretenda civilizada. Baseando-se nessa premissa, nações do mundo todo atravessam o tempo conservando-se inteiras, coesas diante das intempéries que atacam as democracias desde sempre, enquanto ainda descobrem ânimo para inspirar em sua gente o desejo de ir um pouco mais além e a necessidade de jamais se conformar com nada menos que o justo. Foi assim que se fizeram as potências que se cristalizaram como verdadeiramente grandes entre o fim do século 20 e a primeira década do século 21 — salvo uma muito curiosa exceção —, cada uma exemplo do que a humanidade pode ter de melhor. Por outro lado, todos aqueles países que passaram por cima da observância de prerrogativas tão elementares quanto a se manter o Estado democrático de direito foram simplesmente engolidos pelas brumas da história, sem dó, não lhes cabendo outro lugar que não o de guardiões do atraso, da miséria e da morte, terras usurpadas por facínoras que acreditam-se os donos do mundo.

Quando o exercício da liberdade se torna uma fonte de perigos com os quais nem ousávamos sonhar, há algo de muito errado com a vida. Ninguém deveria se amedrontar com o simples fato de ter de andar pelas ruas depois de certa hora, porém quando se dá a conjunção de certos fatores dos quais não se pode abdicar e determinados expedientes, abomináveis, retrato de um projeto de civilização que em algum momento tresandou e se corrompeu, deixando à mostra as chagas mais purulentas da humanidade, as que demoram mais tempo para cicatrizar precisamente por estarem sendo abertas a todo instante, num espetáculo horrendo de ignorância e ódio. É por aí que envereda Melina Matsoukas em “Queen & Slim” (2019), trabalho hercúleo de tentar jogar luz sobre a discriminação racial nos Estados Unidos — e, por extensão, em qualquer lugar onde ela aconteça —, tarefa ingrata, mas da qual ninguém que se queira minimamente digno consegue fugir. Acima do preconceito, Matsoukas se posiciona, muito a sua maneira, sobre a necessidade de se discutir temas amargos e repelentes como injúria racial, racismo, discriminação étnica e o que hoje se conhece sob o nome higienizado de assédio moral, apontar as semelhanças e esclarecer onde são diferentes, sem nunca forçar a barra ou pesar a mão. Para tanto, abusa de subtramas, obriga seu casal de protagonistas a saltar de um cenário para o outro como se estivessem num campo minado — e de certa maneira estão mesmo — e ainda reserva fôlego para pensar no que os dois dizem um ao outro e para os muitos personagens que se lhes interpõem seu périplo forçado, dispondo da colaboração de Lena Waithe e James Frey, falas que alertam para as mais variadas modalidades de segregação racial na América. O amálgama de todos estes elementos, somado a mais um, carta na manga de que a diretora faz uso na hora mais oportuna, permite que se veja sem engano o opróbrio dessa realidade.

O longa de estreia de Matsoukas abre da maneira mais ingênua. Um casal toma um lanche numa birosca meio suspeita em Ohio, meio-oeste americano. Tudo é tão pouco verossímil e ao mesmo tempo tão real — a maior das figuras de linguagens empregadas pela diretora — que o lugar parece cenográfico. Nenhum dos dois têm um nome; só na última sequência, uma ancora de telejornal, anunciando o que se passa com eles depois de fugirem por dias a fio devido ao incidente mais absurdo e macabro da vida de qualquer pessoa, fica-se sabendo que são Angela Johnson e Ernest Hines — nem mesmo os apelidos que constam no título são mencionados, evidência irrefutável de que não haveria mesmo chance dessa história acabar bem. E ela parece não terminar nunca.

Conhecida por dirigir clipes de figurões da música pop nos Estados Unidos, a exemplo de ninguém menos que Beyoncé, Matsoukas entrega um relato dos mais dolorosos, inéditos na crueza, sobre o do que é capaz a intolerância, que degringola em racismo, paranoia, injustiças e crime. São os Estados Unidos diante dos monstros que alimenta dia após dia, sem se dar conta de que, cedo ou tarde, a criatura devora o criador.


Filme: Queen & Slim
Direção: Melina Matsoukas
Ano: 2019
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10