Um dos filmes mais esperados do ano, suspense de Stephen King acaba de chegar à Netflix Nicole Rivelli / Netflix

Um dos filmes mais esperados do ano, suspense de Stephen King acaba de chegar à Netflix

Cada dia tem uma angústia própria e cada tempo, seus próprios desesperos. Chega um momento em que ou nos comprometemos com as intenções certas, ou perdemos o bonde da vida, que não costuma passar duas vezes pelo mesmo ponto — ao contrário do trem descarrilado que é a morte, que nos colhe sem prévio aviso uma, duas, mil vezes ao longo de uma mesma existência. Exatamente por essa razão é que somos obrigados, frente às verdades acachapantes da vida, a fazer de nossos momentos neste plano uma renovação eterna, um incessante vir a ser, em que nos forçamos — e talvez essa seja a melhor palavra — a encontrar novos meios de agir para cada nova situação que nos impõe viver. Tomando-se essa premissa como uma regra de ouro, da qual nunca se pode fugir — sob pena de se sofrer consequências ainda mais enérgicas —, a própria vida demanda mudanças pontuais quanto a se entender a morte como o que ela é: um prolongamento da estada no plano físico, ainda que cada uma tenha seu protagonismo tão específico.

Malgrado toda a infelicidade que pode existir no estar no mundo, uma ideia se reveste da aura de verdade absoluta quando se fala em vida ou morte: ao menor sinal de aperto, quase todos nos decidimos pela primeira, não obstante sintamos a ubiquidade mordaz da indesejada das gentes a nos espreitar, quase sempre covarde, por mais que nos escondamos. Com a poesia possível para um relato de Stephen King, o diretor John Lee Hancock discorre sobre as obsessões de um dos mestres do terror, puxando a brasa para uma sardinha nem sempre contemplada por King. “O Telefone do Sr. Harrigan” (2022) conserva toda a mística das narrativas do autor, mas também envereda por uma senda não menos obscura, heresia semântica que resulta num filme ainda mais perturbador que os muitos inspirados por sua vasta produção.

A adaptação de Hancock para o conto homônimo de King — um dos quatro de “If It Bleeds” (2020; Suma), coletânea de histórias curtas que inclui ainda “Rato”; “Se Sangra”, que dá nome à publicação em inglês; e “A Vida de Chuck” — descreve a relação de Craig com o mundo a sua volta, um lugar que se revela dia a dia mais hostil. Primeiro na pele de Colin O’Brien, Craig, um garoto de oito ou nove anos, perde a mãe para o câncer em 2003, ficando ele o pai, vivido por Joe Tippett, tanto mais deslocados numa cidadezinha do Maine, na Nova Inglaterra americana. Os dois frequentam a igreja local mais como um passatempo do que por uma questão de fé propriamente: é quando são notados pelo senhor Harrigan do título, o bilionário misantropo de Donald Sutherland, em excelente forma. A pena do autor esclarece e o texto do diretor-roteirista corrobora que Harrigan, cuja fortuna remonta a anos de bem-sucedidas operações no mercado financeiro, escolhera passar o tempo de vida que lhe falta naquele pedaço de fim de mundo porque ali ninguém mais precisaria dele. É uma verdade, mas nem tão absoluta quanto ele e Craig esperariam.

Harrigan também vai aos cultos pela mesma razão que o menino solitário e seu pai, espantosamente apático mesmo um bom tempo depois da morte da mulher, porém, ao contrário do restante da assembleia, logo enxerga em Craig a gana de vencer que pautou sua vida desde cedo. Como os olhos já não correspondem mais à agudeza da intuição, que lhe permite ver o que não se mostra, o velho oferece a Craig cinco dólares por hora para que o garoto vá até sua mansão e leia para ele. Logo as terças-feiras se tornam o melhor dia da semana para ambos; é quando Harrigan volta a ter contato com maravilhas da literatura universal — algumas ainda impróprias para a tenra idade do novo funcionário, como “O Amante de Lady Chatterley” (1928), de D. H. Lawrence (1885-1930) — e Craig tem a oportunidade de acessar um universo que jamais imaginara existir.

Hancock entra no mote que dá azo à história com muita parcimônia. Passam alguns anos e Craig ainda conserva o posto de ledor do velho magnata, e agora Jaeden Martell assume o papel, ratificando as inquietações do personagem que O’Brien soubera apresentar no primeiro ato. Agora, Harrigan mantém com o rapaz um laço muito mais estreito, talvez de avô e neto, embora nunca haja nenhuma cena que se possa classificar como emocionante entre os dois. O ricaço tem o costume de presentear seus amigos (raros, como se assiste na boa explicação visual de que Hancock lança mão mais adiante) com volantes de raspadinha, e, finalmente, Craig é contemplado. Ganha três mil dólares, e boa parte do dinheiro vai para a compra de um celular de última geração, que oferece a Harrigan — ele já havia ganho seu próprio aparelho meses antes, do pai, e causa espécie como esse homem é silenciosamente negligenciado pelo filho. Depois de alguma hesitação, Harrigan, um ludita confesso, aceita o mimo, possivelmente entusiasmado pelo aplicativo que lhe permite ter acesso ao sobe e desce das bolsas de valores do mundo todo, um privilégio que os muitos ricos tinham quando de sua juventude. Nesse ponto, King e o diretor elaboram boas tiradas sobre o jornalismo nos tempos de informação à velocidade da luz, que nem sempre ilumina. A virada do enredo faz alusão a uma mudança na relação de Craig e Harrigan, que deixa de ser tão próxima, mas continua firme, inclusive com uma ajudinha nada cômoda do velho sempre que o rapaz precisa dele.

Fãs-raiz dos livros de King — e principalmente dos filmes baseados neles — hão de estranhar muito “O Telefone do Sr. Harrigan”. Muito longe de outras produções do gênero, a exemplo de “1922” (2017), de Zak Hilditch, este talvez seja o trabalho mais idiossincrásico de um escritor maldito, o que Hancock capta bem. Essa é a chave de todo o mistério aqui.


Filme: O Telefone do Sr. Harrigan
Direção: John Lee Hancock
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Terror
Nota: 8/10