Nem tudo o que as palavras não explicam deixa de ser pleno de sentido

Nem tudo o que as palavras não explicam deixa de ser pleno de sentido

A cultura contemporânea é de longe a mais visual de toda a história. Talvez a imagem supere a palavra em eficácia de comunicação, dado sua instantaneidade e pregnância. Mas a escrita, apesar disso, permanece como uma supra-linguagem; espécie de tradução das demais linguagens. De certo modo todas dependem da palavra escrita para serem compreendidas, e não de notas, cores e movimentos. O contrário não acontece. Uma vez que as pessoas sempre querem entender o sentido das coisas, a maneira de respondê-las é falando ou escrevendo, e nunca pintando ou compondo, por exemplo. Em outros termos, toda arte — até mesmo toda a literatura, em particular a poesia — carece da mediação fundamental do código verbal. Não é por outra razão que existem catálogos de arte nas exposições, ou programas musicais nos concertos, e até crítica literária.

É uma solução, mas também um problema: afinal, uma linguagem pode às vezes ser explicada por outra, mas nunca será redutível a outra. Isso significa que a palavra nos conduz até certo ponto, a partir do qual perde eficácia, visto que não pode ser a coisa que pretende explicar. Tanto um som quanto uma cor podem, no máximo, ser descritos como fenômenos físicos e ou químicos — mas o amarelo, assim explicado, nunca será entendido por um cego através da retina, ou enquanto sensação visual. Ouvir e ver são irredutíveis neste sentido: insubstituíveis. Palavra é palavra, cor é cor. Texto é texto, pintura é pintura. E o pintor é aquele artista que enxerga o que as pessoas comuns não enxergam em termos de cores, relações cromáticas e composição. Talvez, por isso, é um artista. Ele tem a faculdade particularmente especial de enxergar o código secreto das cores — que é, também, a matéria prima da forma, assim como a palavra o é, também, no campo da literatura.

A arte costuma ser incompreendida, mas o objetivo da arte não é ser difícil. Porém, só existe arte se a expressão for rica o bastante para não ser óbvia, nos termos plurívocos de Umberto Eco (cf: “Obra Aberta”). Tanto quanto em relação a certos quadros, não é todo mundo que entende certos poemas. Embora escritos com palavras, poemas inteiros de Emily Dickinson e Paul Celan são inconversíveis na própria língua original (inglês ou alemão); no entanto, leitores habituados preferem muito mais ler poemas do que os comentários a seu respeito — por difíceis que sejam. De alguma forma inexplicável é o próprio inacessível que nos preenche. Neste sentido sempre se disse que a suprema poesia beira o silêncio: a suprema pintura idem. É por essa razão que a crítica nunca teve o prestígio da arte — a não ser quando a própria crítica é escrita com tal beleza que subsiste mais por si mesma do que pelo objeto de comentário. A arte é de tal modo poderosa que não precisa se revelar de outra maneira que não por seus próprios meios, em função de um determinado sentido, como a audição e a visão.

Crianças muito mais que os adultos entendem isso, visto que não têm preconceitos. Para elas, uma pintura realista posta ao lado de uma pintura abstrata, são equivalentes. Entre um David e um Robert Motherwell, podem gostar dos dois igualmente. Prática, toda a educação formal e profissional é um processo de explicar e entender o sentido das coisas à nossa volta: é um processo que avança do lúdico para o cientifico. Assim, é inapropriadamente que adotamos perguntas científicas para objetos não científicos: um poema, uma pintura, uma música. Queremos explicações racionais para tudo, quando nem tudo, nem mesmo todo o conhecimento, é lógico ou racional. Amplas áreas da nossa existência, em particular a simbólica, transcende as palavras. Vamos tomar como exemplo uma pintura de Robert Motherwell, supracitado. Motherwell (1915-1991) é um pintor norte-americano, famoso a partir de meados do século 20. É um dos expoentes da chamada Escola de Nova York, que abrange o expressionismo abstrato até a Color Field (pintura de Campo de Cor). A cor interessa a Morherwell tanto quanto a nota interessa ao músico, ou a palavra ao poeta. Ele é particularmente obcecado por uma certa composição em preto sobre branco, da qual derivam várias telas enormes e algo monótonas. É também o autor daqueles garranchos gráficos que ilustram a tradução de “Ulisses”, de James Joyce, por Caetano Galindo.

Motherwell é perfeito para o nosso exemplo porque parece fácil demais; daí, paradoxalmente, a dificuldade de se compreendê-lo. Manchas de tinta que valem milhões de dólares, como as dele, existem aos montes em toda parte: em muros, em parques gráficos, em placas de rua ou em obras de construção civil. E ninguém liga, absolutamente, para estes signos não autorais. Mas o artista liga: o artista faz deste material um objeto de pesquisa. E com razão: uma mancha de cor é o produto de uma técnica que pode ser levada para o quadro. O correspondente, em literatura, pode ser uma forma particular de escrever uma palavra — a corruptela é um exemplo. Pobre é o artista que não explora os recursos que tem ao seu alcance! Mas aí voltamos aos fundamentos, já aludidos, e nisso pode nos auxiliar a história da arte. Compare Motherwell a Salvador Dalí. Parecem não ter nada em comum, mas têm: o inconsciente, portanto o irracional e o pré-lógico. Em boa medida essa eterna dimensão do ser humano interessa a Joyce e a Motherwell, por isso a obra deste pintor é constituída de coisas que não têm sentido objetivo: manchas e grafismos formando composições muito belas, às vezes. E concordamos: a história da arte estabelece o vínculo orgânico essencial; mas, de novo, não explica. Pode-se inclusive descrever essa pintura — ninguém o faria melhor do que um escritor —, e mesmo assim continuarmos ignorantes a respeito de um significado universal. É que falar em sentido não tem sentido, por tudo o que já foi dito. Porque o sentido objetivo pressupõe a negação daqueles fundamentos, até anímicos: é uma contradição em termos.

A partir do método fenomenológico de Edmund Husserl, uma arte como a de Robert Motherwell deveria ser separada de todos os preconceitos e hábitos mentais adquiridos pelo observador (epoché), a fim de ser entendida enquanto tal; enquanto “tò phaenómenon”. Este método parece equivaler à “suspension of disbelief” (suspensão da incredulidade) proposta por Coleridge, a fim de se alcançar “a coisa em si” (zur der Sache selbst), e que é talvez — evocando um segundo filósofo — produto da “intuição”, nos termos e Bergson; isto é: conhecimento prévio e imediato de alguma coisa, independente de explicação. Para os leigos tudo isso é muito abstrato, mas, para o artista, é uma obviedade.

Portanto, confie no artista.