Para curar espírito e elevar a alma, filme na Netflix  vai te dar um banho vida Divulgação / VerCine

Para curar espírito e elevar a alma, filme na Netflix vai te dar um banho vida

Não é porque algumas pessoas conseguem fazer pouco de seus problemas que elas não sejam afetadas por eles. Pensar que para cada dificuldade existe uma solução muitas vezes até óbvia, só esperando para ser, afinal, descoberta e fazer com que a vida seja tomada como a grande celebração que na verdade é. Em tempos de intolerância sistêmica, da prepotência que não só cala, mas também sufoca, do egoísmo que passa por cima das necessidades alheias sem qualquer cerimônia, o talento para lidar com o lado mais primitivo da natureza humana, a nossa natureza, é uma qualidade cada vez mais valorizada. O problema é que, exatamente por sermos todos gente, e, dessa forma, passíveis de erros, parece que a menção ao indício de que cada um tem seus próprios medos e suas angústias mais paralisantes, os que se projetam ou continuam o mais escondidos possível, deixa de ser mera delicadeza para reivindicar a dureza da lei. Nem todos conseguimos ver nossas imperfeições como caminhos tortos para se alcançar a plenitude de viver, e por essa razão há que se louvar quem tenha essa capacidade, nata ou adquirida.

O argentino Marcos Carnevale discorre acerca das fraquezas do homem com rara sensibilidade, em filmes que primam por dar ao espectador a noção de acolhimento, e “Inseparáveis” (2016) faz justiça à fama do diretor. A história real de um milionário perdido num universo de solidão devido à tetraplegia que o aprisiona numa cadeira de rodas, interrompida com a chegada de um assistente nada comum, rende um filme repleto de chavões, é forçoso se apontar, mas nem por isso menos encantador. O roteiro do próprio Carnevale, baseado no que Olivier Nakache e Éric Toledano já haviam mostrado em “Intocáveis”, não salta uma linha do texto original, e, como no longa de 2012, se vale do trabalho dos dois personagens centrais a fim de garantir a empatia e o compromisso do público já nas primeiras cenas. O conflito por que se poderia ansiar entre tipos tão diversos, quiçá mesmo antagônicos, até acontece, contudo, obedecendo a uma engrenagem muito bem azeitada, que determina a hora de abandonar pretensas oportunidades de se explorar essas subtramas e investir mesmo no mote do enredo, ou seja, a amizade improvável, mas bastante verossímil, deles. 

Felipe, o ricaço vivido pelo sempre irretocável Oscar Martínez, é o lado mais brilhante da moeda, não pelo dinheiro, mas pelo que faz com ele. Homem sofisticado como poucos, a interpretação de Martínez, um dos melhores atores de sua geração — não na Argentina ou na América do Sul, mas do mundo —, deixa expressa em casa gesto de Felipe sua amargura, o lado mais sobressalente de sua personalidade, sem dúvida, mas não o mais forte, conforme se constata à medida que a história avança e se aproxima o momento da transformação, disparada com a entrada em cena do outro componente da fórmula. As entrevistas para o cargo de auxiliar direto de Felipe, conduzidas por Ivonne, a governanta de Alejandra Flechner — sequência meio polixa além do razoável — são bruscamente interrompidas por um sujeito meio atabalhoado, que chega à sala esbaforido, reclamando dos maus tratos do jardineiro, um tal Orlando, que nunca aparece, e pleiteando a féria por três dias de trabalho com um dos tantos empregados. É o estalo que faltava para que Felipe entenda a mensagem e admita para si mesmo que essa é a ocasião perfeita para uma revisão de sua vida até ali.

Rodrigo de la Serna revela uma veia cômica que muito veterano do humor jamais pôde encontrar. Seu Tito é uma composição ao mesmo tempo sensível e áspera, quase triste, mas a direção de Carnevale e hábil em disfarçar essas manifestações e convertê-las em outros instantes em que o humor contrabalança a acrimônia sempre por despontar. A maneira como De la Serna interage com o parceiro de cena é comovente quase sempre, e Martínez, generoso, retribui à altura. Mesmo as passagens em que parecem competir para saber quem é o mais desgraçado dos dois, o grande perdedor, tem lá sua graça, e o trecho em que Tito (Iván na carteira de identidade) se cansa do Vivaldi que o novo amigo escuta em casa, com direito a orquestra exclusiva, e se esbalda ao som de “Bombón Asesino”, a cúmbia de Ninel Conde, hilário, já vale o filme. Magia pura.


Filme: Inseparáveis
Direção: Marcos Carnevale
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.