Thriller policial surpreendente e perturbador, na Netflix, vai tirar seu sono e não sairá de sua cabeça

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A banalidade do mal, conceito desenvolvido pela filósofa política alemã Hannah Arendt (1906-1975) no livro “Eichmann em Jerusalém” (1963), parece mesmo à prova de refutação. A filósofa alemã (e judia), uma das intelectuais de maior prestígio no mundo ainda hoje — passados quase cinquenta anos de sua morte —, tinha de averiguar o que de fato levara um homem comum a se tornar um dos maiores expoentes do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945). Despachara-se para Jerusalém, a fim de acompanhar o julgamento do facínora, mas chegara à conclusão de que não havia nada em especial a se contar: Adolf Eichmann (1906-1962) era mesmo um sujeito como outro qualquer, com aspirações e necessidades de um sujeito como qualquer outro, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava. Para Arendt, a capacidade de um indivíduo dito normal sujeitar-se às ordens tresloucadas de um lunático e, assim, contribuir para um dos cenários mais monstruosos da história da humanidade tinha a natureza de um verdadeiro enigma que, em alguma medida, a fascinava.

Talvez o protagonista de “Instinto Secreto” (2009) jamais alcançasse o potencial de destruição a que Eichmann chegou ainda que “involuntariamente”, apenas por ser o funcionário-padrão de um dos maiores genocidas da história da humanidade, o que comprova de modo oblíquo a tese de Arendt. O mal, neste caso, manifesta-se de uma forma particularmente diabólica, sem alarde, apenas para a satisfação de um prazer dito incontrolável, que em teoria, não deveria implicar grandes traumas na vida de ninguém — isso se não se constituísse em dispor de seres humanos como coisas que existem para satisfazer o apetite inusitado de um ricaço excêntrico, que passa por pai de família exemplar, marido amoroso e megaempresário de sucesso. O diretor Bruce A. Evans parte de uma hipótese amplamente comprovada a fim de ratificar um segundo raciocínio sobre a perversão e suas variáveis: sob a fachada de um sujeito doce, cordato, lhano, pode estar um monstro furioso, tanto mais nefasto porque muito bem escondido.

Earl Brooks é uma espécie de antípoda de si mesmo. Esse homem cheio de nuanças, personagem quase burlesco de Kevin Costner, tem uma compulsão. Há quem mate ou morra por uma dose de uísque (que logo vira uma garrafa), uma carreira de cocaína (que não demora a se transformar em meses de economias gastas na boca de fumo) ou uma rodada de pôquer, que se estende por dias até que alguém seja impiedosamente depenado. Brooks, um homem refinado, desenvolveu o gosto um tanto extravagante de perseguir e trucidar homens ou mulheres, desde que não os conheça. Poder-ser-ia dizer que o protagonista de “Instinto Secreto” seria como uma versão atualizada do Jekyll e Hyde de Robert Louis Stevenson (1850-1894), mas o roteiro de Evans e Raynold Gideon garante que seu anti-herói assemelhe-se mais ao Patrick Bateman de Christian Bale em “Psicopata Americano” (2000), o já clássico terror psicológico de Mary Harron. E esse decerto ainda é um forte na cultura pop contemporânea, sobretudo na dos Estados Unidos.

Como todo maníaco que se preze, Brooks é um mestre em disfarces — no terceiro ato, o diretor inclui duas cenas que mostram Costner com outras caras, numa metáfora meio óbvia demais e, portanto, dispensável. Acaba de ser eleito o Homem do Ano da Câmara de Comércio de Portland, no Oregon, noroeste americano, seu casamento com Emma, de Marg Helgenberger, continua de vento em popa, e move céus e terras para que a filha Jane desfrute dos melhores colégios e conclua a faculdade, luxos que ele não pôde ter se dado quando na idade dela. A personagem de Danielle Panabaker guarda algumas ótimas revelações em guinadas bruscas, com destaque para a do segmento final da trama, que, para desespero do espectador mais afoito, não vai além do pesadelo de um homem atormentado pelas lembranças que o aprisionam num mundo de trevas. Bem antes disso, Brooks, tão acostumado a dar as cartas e decidir a sorte de tanta gente, é compelido a fazer as vontades do senhor Smith, de Dane Cook, um tipo tão doido que ousa desafiar a astúcia do decano do jogo em que acabara de entrar.

“Instinto Secreto” tem lances saborosos justamente pelo nonsense de dar a um assassino frio (embora com carisma para dar e vender) o alter ego Marshall, de William Hurt (1950-2022), talvez a consciência crítica possível para homens assim, muito mais comuns do que se pensa.


Filme: Instinto Secreto
Direção: Bruce A. Evans
Ano: 2007
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10