Filme alucinante, na Netflix, te levará para dentro dele e não te deixará piscar por 87 minutos Divulgação / Sony Pictures

Filme alucinante, na Netflix, te levará para dentro dele e não te deixará piscar por 87 minutos

Para aqueles que creem, é de Deus que emana todo o amor e toda a sabedoria — isto é, a filosofia ela mesma. Sábios de todas os campos de todas as escolas ao longo de todos os tempos se empenham por definir Deus, a substância incorpórea, hegemônica e imanente que domina tudo quanto há na face da Terra e, por óbvio, também no além-mundo. É possível que a tentativa mais fervorosa, intelectualmente honesta e mesmo lírica de classificar o Senhor de todas as coisas tenha cabido ao filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1977), que defendia que a natureza de divindade de um ente invisível, incognoscível e que quase nunca se revela (e que quando o faz gera comoção mundial, tamanha a excepcionalidade do evento), dotado do poder de governar todos os outros residia exatamente no seu caráter de se imiscuir a tudo, afinal, todos os seres e mesmo todas as coisas têm seu lado luminoso, celestial, e sua porção sombria, que nunca é dada ao acaso: o mal só existe porque obedecendo a uma determinação do próprio Altíssimo, porque Ele permite.

Para muitos filósofos que se detêm sobre os escritos de Spinoza, é dificílimo entender por que Deus, que tudo sabe; que vê todas as coisas que se passam desde o princípio dos tempos —  inclusive as que ainda nem saíram do coração do homem —; que de maneira direta ou indireta participa de todos os acontecimentos que interferem na vida dos indivíduos e dos povos; que conhece cada alma desde antes que aquela nova vida se fizesse carne, tomasse forma e habitasse o ventre materno; forja uma criatura à sua semelhança e imagem, mas uma criatura imperfeita, que peca, que rouba, que mata e, não satisfeito, malgrado saiba que o homem é fraco, é mau, o pune por suas faltas, quando, Nome sobre todo nome, deveria interferir e apartar do gênero humano a sanha bestial. Pior: a inteligência de homem algum na face na Terra ocorre a razão pela qual Deus presencia a iniquidade se disseminar das cabeças para as bocas, das bocas para as mãos, e continua nababescamente instalado em Seu reino, gozando de um silêncio que ocupa eras inteiras, sem nada fazer, quiçá atônito, esperando em vão que se realize aqui embaixo o milagre da conversão, ou tendo para com sua criação mais querida uma condescendência que fede a omissão ou a desdém. Deus, ousam alguns, o que teria a fazer é mandar novamente o fogo santo que tudo sara e recomeçar a Criação do zero, uma vez que o mundo tornou-se um ajuntamento de Sodomas e Gomorras. Seria Deus, como o homem, também imperfeito, pecador, facínora, e, para piorar, um sádico?

Uma explicação rasa para tal emaranhado de hipóteses tão cabeludas é o surrado — e preciso — livre-arbítrio: Deus concede ao homem o dom da vida; cabe ao homem viver sua própria vida, Deus não irá vivê-la por ele. É como se nossos pais nos dessem um presente muito valioso e o retivessem num cofre, do qual só eles têm a chave e de que só nos seria concedido desfrutar muito espaçadamente. Assim como estão na vida, a filosofia e Deus, imiscuído ao princípio da hegemonia da própria vontade sobre o que os outros esperam de nós, sempre calcado no discernimento, estão na morte e na maneira como a encaramos. Destarte, assim fica Deus, ansiando ingenuamente que o homem coloque em prática o entendimento, um dos sete dons do Seu Espírito Santo, e faça o bem mesmo nas tantas situações em que só espera o mal, ligando no plano físico o que um dia ligará também na Glória eterna, se lá chegar.

Scott Stewart se vale de um filme sucinto, até lacônico, para enfiar a mão nesse vespeiro teológico e tirar dele algumas respostas. Influenciado pelo faroeste de John Ford (1894-1973) em “Rastros de Ódio” (1956), abusando do noir de ficções científicas emblemáticas da literatura, a exemplo dos contos de H.P. Lovecraft (1890-1937), e adaptado da graphic novel coreana que chacoalhou a pasmaceira do mercado editorial e conquistou o público e a crítica, “Padre” (2011) ressuscita alguns dos temas obrigatórios do gênero, mas procurando sempre um veio original. No mundo apocalíptico de um futuro próximo, o personagem-título de Paul Bettany enfrenta inimigos poderosos, encarnados no Black Hat, de Karl Urban, para resgatar a sobrinha, Lucy, vivida por Lily Collins, feita prisioneira por uma gangue de vampiros milenares. Esse componente de tragédia familiar, como no clássico de Ford, se mantém até o desfecho, em que o protagonista interpretado com desvelo por Bettany se prova certo ao sustentar a necessidade de combater o mal que não se deixa ser visto, mesmo que a própria Igreja o proibisse. “Padre” consegue agradar quem se interessa pelo tema e o desbrava há muito e àqueles que só querem mesmo um escape para os próximos 87 minutos. Mas o feitiço acaba por virar contra o feiticeiro, com direito à revelação de um grande deslize do candidato a novo salvador da humanidade.


Filme: Padre
Direção: Scott Stewart
Ano: 2011
Gêneros: Terror/Ação
Nota: 8/10