A irrequietude do homem frente ao passar do tempo, incansável, inclemente, cruel, estimula nele justamente a premência de não desperdiçar as oportunidades que podem ser determinantes quanto a dar um novo rumo a sua vida, muitas vezes passando por cima de meras convenções, descumprindo acordos, ignorando códigos de conduta, ferindo a lei. Em identificando possíveis margens para vencer uma contingência desfavorável qualquer, é da natureza humana não titubear em lançar-se sem medo contra a correnteza e nadar a plenos pulmões, até que reencontre a faixa de areia que encarna sua salvação. A existência humana é um eterno vir a ser, no qual nada é imediato, tampouco definitivo, o que aconselha o homem a redobrar a cautela a fim de não se comprometer com os projetos errados, uma vez que perder tempo com miudezas como ética, moral, empatia, piedade é uma atitude que pode implicar custos incontornáveis. A maneira como muitos entendem a vida e, ainda mais detidamente, a verdade da vida, aponta para uma conclusão nada poética e deveras incômoda: ninguém gosta de ninguém, e quanto menos nos apegamos aos outros, mais nos temos.
Esse é um dos principais recados em “Sin Retorno” (2010), o thriller carregado de reflexões filosóficas de Miguel Cohan. Responsável por bons trabalhos no cinema argentino contemporâneo, Cohan amalgama boa medida de drama a uma narrativa em que o suspense não deixa de prevalecer, mas é distribuído de forma a não estrangular a discussão dos temas sociais que se vão impondo. Sofisticado, mas também despretensioso, seu filme discorre com fluidez sobre as questões que apavoram a classe média ao redor do mundo, o que já fizera ao esmiuçar a vida de um casal em crise até o ponto em que se chega à insânia perpetrada pelo marido, caso de “La Misma Sangre” (2019). Aqui, o roteiro do diretor, dividido com Ana, sua irmã, se desenrola em torno de uma família aparentemente normal, até que se insinuem as circunstâncias trágicas que levam o enredo para onde Cohan queria desde o início, sem atropelos. E essa é uma característica que sendo estranhamente incorporada à trama.
“Sin Retorno” investe bastante tempo apresentando seus personagens para só então se ater em elaborar o conflito central, o que faz da maneira mais natural possível. Há três núcleos fundamentais na história. O primeiro remonta à família de Ricardo Fustiniano, o pai devotado vivido por Luis Machín. Cohan desenha o que vai acontecer sem nenhum alarde e é necessário prestar toda atenção aos tantos detalhes que surgem em cena. Matías, o filho mais velho de Ricardo e Laura, de Ana Celentano, pede ao pai que lhe empreste o carro, mas ele faz dá de ombros; cabe a Laura atender o garoto, que, claro, consegue o que quer. As pequenas angústias e os grandes vícios da classe média tomam corpo de um jeito orgânico, apreendidas didaticamente pela audiência. Eis o atalho pelo qual o diretor segue até fazer com que seu filme desemboque no lugar exato que planejava, de onde segue até que a desdita que dá azo ao longa seja, enfim, exposta. Tudo com uma serenidade quase esquizofrênica, como se se tratasse de uma inofensiva comédia romântica.
O desempenho de Martín Slipak contrasta frontalmente com o de Leonardo Sbaraglia. O Matías pesado, exageradamente melodramático, canastrão de Slipak é uma ofensa à composição plena de nuances, sutil, e ainda assim violenta do Federico Samaniego de Sbaraglia, o que se nota muito antes do embate dos dois na derradeira sequência de “Sin Retorno”. Enquanto ela não chega, Cohan aproveita para incluir o terceiro elemento: trata-se de Víctor Marchetti, o pai que clama por reparação interpretado com ânimo contagiante por Federico Luppi (1936-2017), também aproveitado no desfecho com Slipak e Sbaraglia.
O conceito do amor corrompido, e fonte de tantos outros sentimentos maléficos, infaustos, decerto é a imagem que sobressai em “Sin Retorno”, alerta sempre válido acerca dos humanos logros do coração de quem pensa ser capaz de reinventar o amor.
Filme: Sin Retorno
Direção: Miguel Cohan
Ano: 2010
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10