Filme que lotou os cinemas e fez as pessoas chorarem está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Filme que lotou os cinemas e fez as pessoas chorarem está na Netflix

Quem disser que achou o sentido da vida é ou mentiroso, ou muito previsível ou já morreu. A vida é um mar proceloso que se atravessa numa nau sem casco esperando-se atingir a praia da eternidade, sem nenhuma pressa, tentando se extrair de cada instante o máximo de prazer e enfrentando-se as muitas tormentas a se enunciarem pelo caminho com alguma coragem e toda a honradez. Há quem prefira cumprir o trajeto por meios mais velozes, pretensamente mais seguros, e embarca num voo turbulento, cruza um horizonte tomado por nuvens, admira umas tantas ocasiões de tempo bom, quando o céu se compara à passarela de um azul esmaecido pelo sol inclemente, até que se impõe outra tempestade, muito mais virulenta, camuflada no firmamento sem limite, só esperando a hora propícia para demonstrar sua cólera inexplicável. Seja pela água ou pelo ar — que todos conhecemos com alguma folga —, a verdade é que, mais que o inesperado que estimula, o trágico que condena espreita o homem, e surge sem prévio aviso. Resta a cada um tomar o bicho chamado destino pelo chifre e se empenhar a fim de fazer da aventura da existência uma passagem memorável.

A vida faz tão pouco sentido que, volta e meia, a monotonia salvífica do cotidiano é brutalmente interrompida por uma realidade que se estabelece da maneira mais invasiva, mais radical, mais violenta, sem respeitar os sonhos ou as ilusões de ninguém. Assim se deu com Richard Steven Valenzuela, postulante a celebridade que despenca do Olimpo em que ia se fixando para a dureza do invencível chão em 3 de fevereiro de 1959, a setenta dias de completar dezoito anos, arrastando consigo outros dois fenômenos da música pop americana daqueles longínquos e fervilhantes anos 1950. Luís Valdez, mexicano-americano como Valens, se dedica a recontar boa parte da história do ídolo em “La Bamba” (1987), também o nome da canção que o consagrou. Se aquele garoto romântico e utopista iria longe numa carreira tão competitiva quanto muitas vezes perversa ninguém jamais há de saber; o caso é que Ritchie Valens ajudou a embalar uma juventude que ouvira falar sobre o horror de uma guerra sem precedentes, concluída não fazia muito tempo, e começava a tomar pé de outro desses humanos equívocos, dessa vez de muito mais perto.

Valdez abre seu filme como teria de concluí-lo. O pesadelo com um avião que explode em pleno voo, contemplado em terra por um menino tomado de pânico, que o roteiro sugere ter sido recorrente ao longo da vida do cantor, é a sequência a partir da qual muitos mistérios acerca do protagonista se descortinam. Louis Diamond Phillips domina a personalidade algo rebelde de Valens, pincelando sua composição com a dose exata de doçura que o intérprete da canção que dá nome ao longa deixava transparecer. A versão de Valens para “La Bamba”, música folclórica mexicana conhecida desde o século 19 e gravadas inúmeras vezes a partir de 1939, ganhou seus inconfundíveis solos de guitarra e, no palco, era interpretada por um artista em estado de graça. Todo sorrisos, o cantor parecia fitar cada um dos espectadores enquanto remexia os quadris e sacudia a cabeça, deixando a mostra um topete bem armado, que também remetia o público ao rei do rock’n’roll americano. Espécie de Elvis latino, Ritchie Valens teve de superar os obstáculos muito reais da pobreza humilhante e as situações desagradáveis que sempre envolvem garotos mexicanos-americanos nos Estados Unidos, sobretudo se enveredam pela carreira artística.

O diretor passeia pelos tipos que integram o cotidiano do personagem de Phillips antes e depois de sua consagração com “La Bamba”. Aos poucos, ganham vida Connie, a mãe superprotetora que sempre o incentivara, de Rosanna DeSoto; o meio-irmão Bob, de Esai Morales, uma influência não exatamente positiva, mas também por isso essencial em sua formação; a meia-irmã Rosie, vivida por Elizabeth Peña, sua confidente de ocasião; e Donna Ludwig, a namorada com quem não pudera viver os sonhos para além da efemeridade da vida de rock star. Já na iminência do desfecho, quando Valens e a mocinha de Danielle von Zerneck se reencontram depois de algumas idas e vindas, Valdez torna à carga fatalista do enredo, amenizada pela bela fotografia de Adam Greenberg. Pouco depois, se sabe que o garoto-prodígio de Pacoima, no Vale de São Fernando, subúrbio de Los Angeles, estatelara-se no pátio de uma escola em Clear Lake, no Iowa, junto com Buddy Holly (1936-1959) e The Bip Bopper (1930-1959), outras duas promessas do showbizz nos Estados Unidos. Contudo, é a forma como o diretor opta por abordar a catástrofe que de fato interessa aqui, uma vez que não são mostradas as cenas do acidente, mas a notícia sendo transmitida quase de imediato pelo rádio e pegando de surpresa uma mãe entre incrédula e em desespero.


Filme: La Bamba
Direção: Luís Valdez
Ano: 1987
Gêneros: Drama/Documentário/Musical
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.