Tão inútil quanto boa parte dos conflitos armados em curso mundo afora, a sabedoria da guerra se constitui numa verdade absoluta (e paradoxalmente enganosa), driblando evidências, transformando vilões em mocinhos e vice-versa e propalando males para os quais não tem solução imediata, muito mais perversos do que as circunstâncias que lhe deram azo. Contudo, para o bem da honestidade intelectual, há que se admitir que sempre existem os enfrentamentos necessários, bem como surgem do cenário extremo de uma guerra pérolas, às vezes um tanto cínicas, mas saborosas, do que é viver em meio ao fogo cruzado de dois lados em campos de batalha opostos.
Kathryn Bigelow escolheu, por alguma razão, começar “Guerra ao Terror” (2008), com uma epígrafe que não deixa de ser verdadeira. Chris Hedges, vencedor do Pulitzer, o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, correspondente estrangeiro do New York Times por quinze anos, entre 1990 e 2005, no Oriente Médio e nos Bálcãs, disse certa feita que “a emoção do combate costuma ser um vício forte e letal, pois a guerra é uma droga”. Nunca estive numa guerra; embora meu sonho de menino fosse me tornar o novo Winston Churchill (1874-1965) ou, pelo menos, um seu pastiche bem-acabado, dele ou de Ernest Hemingway (1899-1961), o homem que mais se aproximou de conseguir tamanha proeza — se considerarmos a quantidade de uísque que um e outro bebiam, arrisco-me a dizer que ficaram empatados —, acabei tendo de me dar por satisfeito em peregrinar pelos corredores de Brasília à cata de alguma verdade absoluta, não de comandantes de companhias que punham a cabeça a prêmio enfrentando rivais numa peleja de vida ou morte, mas de políticos do baixo clero, ávidos por uma nota que lhes fizesse menos insignificantes. Hoje, em meu novo ofício dos sonhos, tenho algum tempo até conseguir tornar-me uma versão tupiniquim de Roger Ebert (1942-2013), mas igualmente me daria por satisfeito se fosse capaz de chegar perto do que foi Paulo Francis (1930-1997) aquela força da natureza. O relógio está correndo. Tique, taque, tique, taque, tique, taque…
Eu dizia que nunca estive na guerra, que, creio, pode mesmo se tornar um vício, em especial para personalidades obsessivas, megalômanas e algo tediosas, que inventam prazeres quase impossíveis para se provarem capazes de momentos de felicidade. Entretanto, em minha monografia de conclusão de curso, em 1912, me vali reiteradas vezes de “A Primeira Vítima” (1978), do australiano Phillip Knightley (1929-2016), tanto que a única edição disponível na biblioteca da universidade pela qual me formei restou completamente rabiscada e grifada, e se o bravo guerreiro tiver resistido ao passar dos anos sem os melhoramentos devidos, me comprometo a arcar com os custos da restauração. O título do livro é uma referência óbvia àquela declaração sapientíssima, cuja autoria, por incrível que pareça, não se conhece — há quem a atribua a Ésquilo (525 a.C.- 455 a.C.), dramaturgo da Grécia Antiga, e os que juram que foi Hiram Johnson (1866-1945), senador e governador da Califórnia pelo Partido Republicano, o sábio capaz de tão elevada iluminação; eu prefiro ficar com o mais velho. Numa guerra, a primeira vítima é mesmo a verdade, e nem se precisa ter empenhado US$ 8 trilhões de dólares numa sucessão de contendas ao longo de vinte anos para supô-lo.
William James é o Ésquilo que a América conseguiu produzir durante os governos George W. Bush (2001-2009). O sargento vivido por Jeremy Renner em “Guerra ao Terror” não tem nada de herói: James é, no máximo, um anti-herói — e se orgulha disso. Mais que um especialista em desarmar bombas, James entende como funcionam esses dispositivos e, como se não bastasse, ainda se mete a tecer, a seu modo, abordagens quase transcendentais sobre as mentes de quem as fabrica. O que soa como uma bênção, uma vez que está cercado por tipos como esses, sem pejo nenhum de espalhar as próprias tripas pelos ares, desde que levem junto uns tantos soldados gringos. Seu trabalho é, literalmente, um campo minado.
O sargento James de Renner, cuja performance, felizmente, destoa de quase tudo o que se viu no cinema a esse respeito, não tem o menor interesse bancar o patriota: faz o que tem de fazer, e pronto. Fiel a seus sentimentos e, sobretudo, a suas emoções, James gosta mesmo do perigo, e não se importa se essa sua inclinação suicida acabe por arrastar seus irmãos de farda para o olho do furacão — a exemplo do que se assiste numa das sequências finais do longa, quando salva a vida de Owen, de Brian Geraghty, depois de tê-lo metido num enrosco desnecessário, deixando-o assim fora da brincadeira por seis meses (e com o fêmur despedaçado). Owen, sim, endossa as noções do que vem a ser uma batalha campal para o americano comum: a guerra como uma fonte de diversão ou a segunda chance de uma infância feliz para negros, caipiras, latinos e todo o resto da escória não-branca que o Tio Sam não toma por sobrinhos legítimos. Haja bomba!
É claro que o roteiro de Mark Boal não daria toda essa colher de chá para o sargento James, e é justamente na pele de um afro-americano que vem o contraponto à sua natureza algo insensata, momento da trama que resvala no politicamente correto, sem prejuízo ao todo. Recordando os anos em que servira no esquadrão antibombas de um dos inúmeros destacamentos americanos em Bagdá, Boal reserva para o sargento J.T. Sanborn o papel de alter ego do protagonista. O personagem de Anthony Mackie lhe dá cobertura, junto com seus homens, acompanhando a movimentação periférica e escrutinando qualquer viela que possa ser usada como esconderijo de atiradores inimigos — e também lhe passando os pitos que merece, quando o sargento de Jeremy Renner extrapola seus poucos limites e se mete a fazer o que não estava combinado. Ele, sim, é o genuíno senhor da guerra, mesmo que James, o anti-herói, se pretenda o próprio Super-Homem, com visão de raio-X e tudo, tão certo de que sobreviveria caso algum dos projéteis explodisse sem a sua aquiescência que até se permite lançar fora o aparelho com que Sanborn se comunica com ele.
A empreitada de Kathryn Bigelow quanto a enveredar por narrativas que apontam para a guerra como uma prova inegável da evolução humana tem se mostrado bem-sucedida, o que se observa com “A Hora Mais Escura” (2013), no qual retrata os desdobramentos de outro conflito, no Afeganistão, que desemboca na captura e morte do saudita Osama bin Laden (1957-2011) em território paquistanês. Sem medo de trabalho pesado nem de cara feia, Bigelow foi à luta e “Guerra ao Terror” faturou os Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor de 2008, além de outras quatro estatuetas em diferentes categorias, contra nada menos que “Avatar”, de seu ex-marido, James Cameron. Numa Hollywood de histórias feitas por homens, sobre homens — caso do próprio roteiro de Mark Boal, que muda de expediente no filme de 2013 — e sempre à mercê de executivos poderosos e incapazes de controlar seus instintos, é uma verdadeira proeza.
“Guerra ao Terror”, na prática um introito de “A Hora Mais Escura”, deixa claro que a guerra realmente pode ser divertida para muita gente, para quem vive na pele as ameaças de se morrer em batalha ou só se entrega gostosamente à experiência sem maiores inquietações. William James está para Kathryn Bigelow assim como Mark Boal está para J.T. Sanborn. Eis o postulado básico para se entender o filme.
Filme: Guerra ao Terror
Direção: Kathryn Bigelow
Ano: 2008
Gêneros: Guerra/Ação
Nota: 9/10