Graciliano Ramos e Machado de Assis: adições e subtrações

Graciliano Ramos e Machado de Assis: adições e subtrações

Alguns críticos de importância, como Gilberto Mendonça Teles e Massaud Moisés, demonstraram a influência de Machado de Assis sobre Graciliano Ramos. Há um nítido jogo especular presidindo a construção de “São Bernardo” em relação a “Dom Casmurro”: obras parecidas, partilham a estrutura narrativa semelhante, a natureza memorialística, aspectos dramáticos e o tema do ciúme. Mas a escrita do alagoano, pessoalíssima, muito pouco tem a ver com a elegância de Machado. Em “Origens e Fins”, Carpeaux definiu o estilo do maior romancista da Geração de 1930 como poeticamente clássico, a trair um “oculto passado parnasiano”. A categoria Clássico implicaria uma gama de estilos que atravessa a história da arte: em geral a associamos à Grécia de Péricles, na Antiguidade, ou à França de Luís XIV, no século 18 (neoclassicismo, para ser exato). Na Idade Moderna, seria mais do que essa autossuficiência de teor racional, entretanto: seria também a tradição católico-barroca, exponencial na Itália e sobretudo na Espanha, avançando pelo mundo protestante dos Países-Baixos sob a tortuosidade lânguida do rococó. Não seria apenas luz e moderação, mas também sombra e sensualidade.

Feita essa observação, é bem lembrado que o classicismo da linguagem de Graciliano reporta, de fato, à tradição francesa, que em nossa poesia rendeu Bilac, embora o efeito obtido seja curiosamente paradoxal. É impressionante o que Graciliano consegue subtrair com essa técnica conhecida pelo formalismo e polidez: se sua arte fosse feita para o gozo dos olhos e não apenas do intelecto, longe do equilíbrio e do contorno gracioso de um Jean-Auguste Dominique Ingres veríamos emergir, perplexos, o tosco à maneira não sei se de Max Beckmann ou do Portinari da série “Retirantes”. Isto é, não a linha delgada que aspira à exatidão matemática, antes o traço violento, deformante. É uma contradição em termos: de sorte que Carpeaux tem razão, é lícito reconhecer que o gênio de Graciliano conseguiu uma síntese aparentemente impossível, a subverter de certo modo o didatismo das classificações e o aparente domínio da matéria expressiva pelos críticos e estudiosos.

Graciliano Ramos | Ilustração: José Carlos Guimarães / Revista Bula

Mas voltemos ao veio inicial: a influência machadiana. Há na história de “São Bernardo” sutilezas que evocam o mestre fluminense, e que tanto podem ser simples resquícios quanto o princípio de uma explicação razoável para os segredos do romance. Senão vejamos, do mais insignificante ao mais ponderável: num dos períodos de seu capítulo 24, há essa passagem: “Mais tarde, no escritório, uma ideia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve lá um instante quebrando louça e deu fora. Tentei agarrá-la, ia longe”.

Trata-se de uma construção tipicamente machadiana, com o tom zombeteiro de quem aspira vida às coisas inanimadas e abstratas. Não há outra igual no romance, centrado no tema fundamental do ser do próprio herói: “São Bernardo” são as memórias de Paulo Honório, como existem as de Bentinho. Vê-se que os dois terminam na mais completa solidão, e o segundo é um autêntico Dom Casmurro. Há ainda o filho do casal Paulo Honório e Madalena, aliás uma história com ciúme, lindeira portanto à de Machado. Essa identidade comum enseja, no capítulo 25, um comentário sintomático do narrador — transcrito por Mendonça Teles em “A escrituração da escritura” — justamente quando o fazendeiro é tomado de assalto pelas suspeitas em relação à esposa. O herói examina os traços físicos do filho como se fosse Bentinho diante de Ezequiel, à procura de um sinal que revele a traição. Ainda isso é de menos: Graciliano parece ter tomado de empréstimo de Machado e pagou com juros e correção monetária, em “São Bernardo”, é uma imagem que o último converte em metáfora. Leiam o Capítulo LVI de “Dom Casmurro” e a encontrarão completa. Diz assim o fundamental: “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas, ou com poucas e gradeadas, às semelhanças de conventos e prisões”.

Que Graciliano tenha se interessado por este período de “Dom Casmurro” em particular é hipoteticamente aceitável. Pode-se pelo menos cotejá-la à dinâmica de base de “São Bernardo”. A sede em que vive Paulo Honório não tem luxos, pela própria índole do proprietário (reconhece, no balanço final, que é um homem tosco). Ele tampouco ligaria em aproveitá-la, pois o que o absorve é — dado interessante — o mundo exterior, os negócios, as andanças de inspeção, fiscalizando as obras e os trabalhadores da fazenda. Nessa labuta surpreendemos a dificuldade que tem de estar consigo mesmo: o mundo e suas exigências inesgotáveis são vias de escape inconscientes de um homem que trabalha para comer, apenas. É um bicho qualquer, movido pelo instinto miserável da sobrevivência. O comércio entre interior e exterior, isto é, entre a casa que se faz símbolo ou metáfora do homem, conforme a sugestão de Machado, revela-se nessa confissão aparentemente tola, do herói: “Levantei-me, encostei-me à balaustrada e comecei a encher o cachimbo, voltando-me para fora, que no interior da minha casa tudo era desagradável”.

Machado de Assis | Foto: ABL

A existência de Paulo Honório no interior de sua morada calha bem com a definição machadiana de que “Também as há fechadas e escuras”, isto é, casas — ou se o leitor preferir, almas. Todo o capítulo 30 de “São Bernardo” é uma noite passada pelo herói dentro da casa da fazenda, por outras palavras, um estar em si. É quando lhe vêm à tona e o acuam seus fantasmas, suas obsessões, suas neuroses, não estando ele certo do que seja real e do que é fruto da imaginação (“no interior da minha casa tudo era desagradável”). O último capítulo, que é um balanço existencial, passa-o também dentro de casa — ou enfurnado nas próprias entranhas. Trata-se de outra noite, sob a qual depara-se com um homem numa solidão excruciante: “As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta”.

 Curioso como, inversamente, este homem oco, reduzido brutalmente em sua humanidade e escala de valore essenciais pelo mundo, só encontra alívio quando se volta para o exterior. Em dado momento ele sobe à torre da igreja e contempla São Bernardo. Seus olhos perdem-se no horizonte e a paisagem, vista panoramicamente, transformada pelo “seu” esforço individual, confere-lhe as dimensões de um deus que tudo provê: “Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes”.

À medida que olha a fazenda, agiganta-se, à medida que mergulha em si, apequena-se. No capítulo final, Paulo Honório vê-se reduzido às próprias dimensões, sobrevindo-lhe as perguntas sem respostas e a agonia. Enquanto prosperou, o parâmetro de suas relações fora o cálculo, em termos de lucros, despesas e compensações. Toda a sua argumentação é obsessiva nesse sentido, mediando-se pela troca; cada um de seu contubérnio tem um preço, inclusive a esposa Madalena, que percebe salário e tem direito a férias: bastante normal, não fosse o fato de que não é o senso de justiça o leitmotiv de Paulo Honorário. Iniquo, ele a remunera, como nos demais casos — como remunera o editor Gondim e o advogado Nogueira —, para poder exigir e ter o controle de suas relações. É indiferente o dado afetivo ou conjugal.

Aliás, não contrai matrimônio por paixão, como quer Massaud Moisés, mas para produzir um herdeiro. Dirigindo-se à d. Glória, a quem confidencia sua intenção com Madalena, é enfático: “Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia”. Tal criatura é um produto do ventre, não do coração. O realismo de “São Bernardo” equilibra-se entre a psique e o organismo físico. Paulo Honório é claro devedor do naturalismo: além dessa comparação bestial, põe a culpa na profissão e no meio, e a opressão psicológica que o atinge traduz-se melhor pelos nervos à flor da pele, quase a rebentar.

Há algo a ser dito sobre Madalena: apesar de ela dividir o centro da trama romanesca, não é uma criação inteiramente convincente (Paulo Honório o é, sem arestas). O problema da heroína, acredito, transparece particularmente em duas situações fundamentais: primeiro quando, no capítulo 16, ela aceita se casar com seu pretendente, admitindo combinar com um homem que, no mesmo diálogo, contraria flagrantemente tudo aquilo que ela se propõe representar: os livros e a instrução. O desacordo seguinte é mais chocante: ao falar do filho, Paulo Honório revela que “ninguém se interessava por ele”, salvo Casimiro Lopes, que é praticamente uma besta. Enquanto o menino chorava sentido, a mãe, deprimida, “andava pelos cantos, com as pálpebras vermelhas e suspirando”. Madalena celebrizou-se como um símbolo da solidariedade em nossa literatura. É o narrador quem registra sua indignação, não direi com uma classe, mas com o sofrimento de terceiros: Rosa, Marciano, Margarida, entre outros. Não é incongruente, com efeito, que logo o filho — tanto mais por se tratar de um inocente — não mereça sua piedade?

Há quem diga — já isto não é problema de Madalena, mas dos críticos — que se trata de uma revolucionária, tingida de cores socialistas. O marido, na sua ignorância teórica, pode fazer essa inferência, não o leitor atento (talvez eu mude de opinião, após nova leitura). A mim me pareceu que sua indignação é, apenas, a de um espírito saudável em face de um que é patológico, qual seja o do marido. Sua ingenuidade não obstante a impede de alcançar dimensões panfletárias, e as ideias que se conformam ao seu temperamento chegam-lhe mais por vias indiretas, em particular Luis Padilha, do que por iniciativa própria ou vocação política.

Paulo Honório é o oposto de Madalena, de onde o tensionamento que termina em tragédia. Desconhece vínculos de solidariedade e o amor; não há espaço para afeições e sensibilidades nessa alma assolada pela matéria. É integralmente absorvido pela posse, que esfacela sua humanidade: dele em verdade poderíamos nos apiedar como de qualquer um de seus empregados, porque são, possivelmente, mais felizes do que ele. Castigado pela lógica perversa do capitalismo, tem consciência de sua mesquinhez e vive a um passo do inferno. Mas a matéria o abandona finalmente — fatalmente — e percebe a estupidez de seus projetos de grandeza. Percebe, tarde, que se apegara a coisas efêmeras, incapazes de acudi-lo. Todos o abandonam em função de São Bernardo: São Bernardo, finalmente, o abandona, levada às brecas pelos ventos que sopram do Sul (a Revolução de 30).

Impõem-se, severa, a pergunta de repercussão universal desta lição igualmente grande: o que, além de acumular, acumular, acumular (interesse supremo de nosso tempo mendicante)… pode e deve um homem fazer nessa vida, antes de se deparar com a ruína?