Explicando a inexplicável arte pós-moderna Jeff Koons

Explicando a inexplicável arte pós-moderna

Exposição de arte, hoje em dia, parece feira de bugigangas. Citemos o exemplo de uma das mais influentes do mundo: a Feira de Artes de Basel, na Suíça. É a última referência em matéria de “tendências”. Na verdade, lá você encontra literalmente de tudo, sob a chancela da arte: objetos do cotidiano, itens de decoração, projetos, maquetes, gerigonças e, até, arroz com feijão: desenhos, pinturas e esculturas. Neste sentido, é quase como entrar nas lojas da Leroy Merlin. A arte tornou-se um gigantesco sorvedouro. Um buraco negro, cujo nome é pós-modernidade.

O conceito vulgar que se tem de arte é bastante conservador. Em pleno século 21 a associamos a uns poucos gêneros popularizados: a pintura, em primeira ordem, seguida de escultura, desenho e gravura. De preferência tudo imitando a natureza, ainda, em cada mínimo detalhe (sobre o hiper-realismo, tão na moda, Giulio Carlo Argan diz que aqui “já nos encontramos fora do campo da arte, e estamos no campo da mania”: é mais um caso psicológico e uma enorme “perda de tempo”). Já as vagas referências que temos de grandes artistas não mudaram muito, até hoje: vão de Leonardo a Picasso, de Monet a Van Gogh: poucas e verdadeiras marcas consagradas, quase tão populares quanto Jesus Cristo. Têm em comum apenas o fato de serem pintores, e quase ninguém se lembra de um grande artista pós-moderno: nem sequer o mais destacado deles, Andy Warhol, alcançou aquela popularidade arrasadora. Foi na época de Warhol que a arte novamente se redefiniu e começaram a se generalizar, digamos assim, as bugigangas. O que mudou?

Para responder a essa pergunta é preciso, mesmo em linhas gerais, explicar o que veio antes. Uma das características do modernismo (fase anterior) é a atuação paralela, e não mais em sequência, de muitos “ismos”, cada um diferente do outro: impressionismo, cubismo, fauvismo, neoplasticismo etc. Outra característica é que esses ismos surgiam de ações coletivas, naquele meio século de coletivismos políticos, também (liberalismo, comunismo, fascismo). Eram os “movimentos”, guiados por “manifestos”, relacionados a determinadas “pesquisas”. Por isso é fácil reconhecer as filiações: há um conjunto de códigos plástico-visuais que permite identificar se se trata disso ou daquilo. As obras, como os artistas, podiam ser agrupadas por estilos; nada que olhos habituados não consigam determinar. Isso acabou até meados do século 20, quando a arte voltou a ser expressão estritamente individual, de um artista solitário. Nessa transição, entre 1950 e 1960, surgiram o expressionismo abstrato, a hard-edge, a nova objetividade, a arte cinética, a op art, a pop art, a arte povera, etc. A pintura mais uma vez sobreviveu, desta feita ao beco “sem saída” da abstração: surgiram Giorgio Morandi, Jean Dubuffet, Lucio Fontana, Francis Bacon, Georges Mathieu; enfim, uma infinidade de novos pintores de primeira grandeza. Mas a grande vedete das artes, desde a renascença, nunca mais ocuparia o centro das atenções.

No século 20 há duas datas fundamentais para o conceito de arte: a década de 1910 e a década de 1960. Cada uma dessas décadas representa uma revolução sem precedentes, de caráter ontológico. O termo filosófico quer dizer algo simples: que a arte redefiniu a ideia que fazia de si mesma. Virou arte pela arte. A primeira data com Picasso: “Les Demoiselles d’Avignon” (1907), a pintura-chave, encontrou uma solução para a crise da representação de fins do séc. 19. Já a segunda data não tem um “artista” em particular que fez tabula rasa do passado. Mas uma conjugação deles, ao contrário de Picasso, enterrou a arte ao invés de salvá-la. Isso, pelo menos, na visão de Giulio Carlo Argan. Nos termos do crítico italiano, com o surgimento da sociedade de consumo a arte encerra seu ciclo “histórico”, e o artista na pós-modernidade torna-se um “técnico da imagem”. Seria inútil ignorar o pioneirismo, ainda entre os modernistas, de Marcel Duchamp, criador do ready-made: em termos rigorosos foi outra revolução antológica. Com “Mutt”, de 1917, Duchamp amplia de maneira radical o campo das possibilidades artísticas, criando um gênero novo, capaz de provar o peso das instituições na legitimação daquilo que se chama “arte”. Foi uma provocação bastante irônica, que de um só golpe acabou com a sacralidade da arte. Além do ready-made os dadaístas — Duchamp entre eles — criaram as performances e os happenings. Antes, portanto, da pós-modernidade, a arte começou a incorporar a atitude, o corpo e outras “esquisitices” jamais sonhadas. E falou-se por fim em “antiarte”, ameaçando já naqueles tempos a tradicional ideia de arte.

Enfim, as bases daquilo que hoje se chama pós-modernismo tem mais de cem anos, o que significa que existe solução de continuidade entre uma era e outra. O que nasceu daquelas bases é uma explosão sem precedentes, que deu origem a uma diversidade tão grande de gêneros que é praticamente impossível delimitar com clareza o campo da arte. A incredulidade do público nunca foi tão grande, e já não achamos mais que o que se faz, desde então, é arte, e sim uma feira de bugigangas.

Se em 1907 Picasso conseguiu salvar a pintura da extinção, em torno de 1950 a situação parecia ser menos promissora. Uma artista brasileira pioneira do pós-modernismo, Lygia Clark, já não acreditava mais na pintura bidimensional: nasce daí a série “Bichos”, em 1959. Divisores de água no Brasil, Lygia e Hélio Oiticica partilhavam com artistas internacionais do mesmo inconformismo e gosto pela experimentação, o inusitado: algo que ia além da escultura e da pintura. Voltou-se, aliás, a falar na morte da pintura (como se falou, também, na morte do romance pós-Joyce). O cadáver nunca apareceu porque, apesar de ser jogada para o escanteio, ela continuou existindo. Seu vigor é impressionante, por exemplo, entre os neo-expressionistas alemães: Jörg Immendorff, Georg Baselitz, Anselm Kiefer e outros. Talvez sua permanência até aqui se deva ao descobrimento de que a abstração, criada pelos modernistas (Picasso, Kandinsky e Malevich, em primeira linha) não era um beco sem saída, mas uma porta que dava acesso… ao infinito. E o infinito, pelo menos até hoje, não se esgotou. Mas a pintura seria obrigada a partilhar espaço com as novidades em profusão. O kitsch, a paródia e o pastiche penetraram as portas do Olimpo e foram consagrados. O brega nunca foi tão bem aceito como agora, prova-nos Jeff Koons, o mesmo que traça Cicciolina e faz disso um cartaz, um bibelô. O artista, enquanto personalidade, parece nunca ter sido tão propenso ao narcisismo, ao exibicionismo, à extravagância e à afetação: muito mais que o dândi vanguardista. Poderia compor a fauna de um planeta exótico, de Star Wars.

Olhando em perspectiva de médio e longo prazo, nenhuma linguagem estética ficou tão diferente de si mesma quanto as artes visuais, da década de 1960 para cá. Podemos exemplificar: coloque Fídias e Rafael — distantes um do outro mil anos — e os compare aos contemporâneos Jason Rhoades ou Stephen Prina. Os dois primeiros se associam ao primeiro golpe de vista. Mas ninguém diria que a arte dos dois últimos possui qualquer afinidade linguística com Fídias e Rafael. Não parecem pertencer ao mesmo campo de atuação estética. Em parte isso se deve à escolha de novos meios expressivos, além dos tradicionais, e em parte à criação de gêneros que ainda não existiam. As novas nomenclaturas — para além dos gêneros dadaístas — são a performance, a videoarte, a instalação, a intervenção, a apropriação, e por aí vai. A imaginação pós-moderna não tem limite.

Nenhuma outra expressão artística — música, literatura, teatro etc. — mudou tanto nem mesmo no curto e radical século 20, a ponto de tornar-se tão irreconhecível em relação aos seus meios expressivos, estabelecidos nos séculos precedentes. Assim como a história tornou-se uma disciplina totalizante entre as ciências humanas (história dos Annales) absorvendo a geografia, a sociologia e a economia, também as artes visuais tornaram-se totalizantes, abrangendo a música, o teatro, o design e, principalmente, a fotografia e o cinema. Uma artista atual como a finlandesa Eija-Liisa Ahtila, por exemplo, poderia pertencer ao cinema se o cinema fosse uma linguagem tão extremista quanto as artes visuais, hoje em dia. Porque sua obra são vídeos. Mas, apesar de ser cineasta de formação, Eija-Liisa Ahtila expõe suas películas de 20 segundos em galerias, apresentando-se como artista visual multimídia. A fronteira com o cinema foi unilateralmente desfeita. E também a fronteira com a fotografia e a publicidade. É o caso da norte-americana Barbara Kruger, que cria peça publicitárias às avessas, denunciando o totalitarismo do mercado e da cultura de massas. Para isso ela costuma revestir ambientes inteiros, criando uma atmosfera sedutora, envolvente e sufocante.

A mensagem da arte pós-moderna parece ser, na maioria das vezes, tão ininteligível como um texto de Kant ou um poema de Emily Dickinson. Mas, ao contrário do que o público não especializado diz, essa arte tem sentido objetivo. Baseia-se em sólidos fundamentos conceituais, sendo em geral bastante convincente do ponto de vista de seu conteúdo, mensagem ou reflexão. Samuel Taylor Coleridge, poeta romântica, deu a dica consagrada: “suspenda a incredulidade” e verá que essa arte começa a fazer sentido — claro, de posse das informações adequadas. Como bem sabia Harold Bloom, a estranheza é um atributo importante da grande arte, e nem sempre a estranheza é gratuita, mas a solução possível de um problema. Pode-se até dizer que a arte pós-moderna é a forma de expressão artística mais próxima que existe da filosofia. Em muitos casos chega a ser, rigorosamente, ilustração ou representação de conceitos filosóficos, ou — arriscaria dizer — filosofia metaforizada. Não que constitua sistemas, mas porque ilustra proposições. Isso vale para o criador da arte conceitual, Joseph Kosuth, e vale também para um pintor tão impressionante como Mark Tansey.

Nesse sentido, devemos prescindir da beleza para encarar a produção pós-moderna. A beleza é um objetivo da pré-histórica estética clássica. Belo é um quadro de Correggio, de Caravaggio. Já a arte atual nem sempre apela ao sentido da visão, mas principalmente ao cérebro: também isso começou com Picasso e foi radicalizado por Duchamp. Desde sempre a arte pela arte é um quebra-cabeça intelectual, o que lhe confere uma frieza congênita. Não é algo que comumente você usufruiu e diz “amei!”. Mas dá o que pensar.

A arte pós-moderna é diferente, por exemplo, da ficção literária, inconcebível sem a presença expressa de seres humanos, que atuam como personagens, e pressupõem, além disso, um espaço e uma temporalidade. Mesmo os livros mais áridos e linguísticos que existem — “O Som e a Fúria”, “Ulisses” e até “Finnegans Wake” — exigem, necessariamente, tempo, espaço e personagem. Pois a arte contemporânea, desde o século 19, prescinde não só de espaço e tempo para comunicar uma mensagem, mas eventualmente da participação de pessoas e até de sua citação. E, contudo, é uma arte coirmã da literatura (em especial a poesia), e por uma razão muito simples: porque também é pensamento por imagens. Porém seu objeto de interesse, muitas vezes, são apenas ideias. Não existe outra forma de abordar, por exemplo, certas obras de Sherrie Levine ou Peter Halley. São artistas herméticos para quem desconhece as problematizações que implicam. Mas, levante o véu da postulação teórica e tudo se esclarece, como que por encanto.

A maior ironia a respeito do pós-modernismo é sua vocação para a falácia, apesar de toda base filosófica de algumas de suas premissas. Por exemplo, a litânia fúnebre sobre a morte da arte e a morte do próprio autor (ideias de Roland Barthes), que influenciou os chamados “antiestetas”. Isso, tanto quanto o conceito de “antiarte”, não deixa de ser uma blague. Porque, na prática, os artistas continuam assumindo suas obras, e para todos os efeitos aquilo que fazem continua sendo chamado de “arte”e não de “antiarte” ou outra coisa qualquer. Uma prova disso é que um dos principais eventos mundiais, na atualidade é a… Art Basel. O público vai ao pavilhão suíço para ver “arte”, e é muito provável que as autoridades no assunto — artistas, críticos e marchands — falem corriqueiramente de “arte”, ainda que nos seus textos e proclamações vivam de polêmicas negacionistas, a respeito. É arte, então? Aceitamos que sim.

Duchamp intuíra que o estatuto da arte é definido por um corpo institucional (espaços autorizados e publicações) e pelo público; sem esquecer a assinatura do artista. A diferença entre ele e todos os demais que chegaram à mesma conclusão é que Duchamp resolveu tirar a prova, com uma atitude radical. Desde então, até uma bugiganga (pode ser um bidê, uma mesa de pingue-pongue ou uma barraca) é considerado arte, sob as mesmas condições. Não culpe o artista por isso; antes, procure saber o que este signo banal revela sobre a sociedade do seu tempo. A alienação e o vazio não são descartáveis.