O filme da Netflix que é colírio explosivo para os olhos Divulgação / Netflix

O filme da Netflix que é colírio explosivo para os olhos

Se há um nicho do cinema internacional que cresce vertiginosamente, arrebatando o deslumbramento do público e a preocupação contida de outras praças mundo afora é aquele produzido na Coreia do Sul. Não há limites para a criatividade dos diretores coreanos: zumbis, dramas de família, suspenses, ficções científicas, todos esses temas já eram destrinchados na tela por realizadores atentos, cujo trabalho não deixa nada a dever a Hollywood, e em 2021 a indústria de filmes do país resolveu que era hora de ir mais longe. Território localizado na península de mesmo nome ao nordeste da Ásia, composto por duas nações soberanas ao norte e ao sul, a Coreia sempre viveu sob tensão constante, cenário que se agravou muito a partir de 1950, quando da eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional. A Guerra da Coreia só veio a cabo três anos depois, graças a um armistício. Tomando a história oficial por base, nenhum dos dois foi declarado vitorioso, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente. Toda essa experiência e toda essa desenvoltura garantem à Coreia do Sul a aura de país desenvolvido, ainda que reste muito ainda a ser feito, e não será surpresa para ninguém se, um dia, com toda a parcimônia, for dada a largada para a corrida da Coreia do Sul rumo ao espaço. É só o que falta para que os sul-coreanos entrem pela porta da frente num futuro simplesmente inalcançável a nações análogas, como o Brasil, sempre perdido entre escândalos políticos que nunca recebem reprimenda no mesmo tom, lutando para se manter vivo no mercado internacional malgrado não tenha sequer a meios de garantir se um contrato será cumprido tal como acordado. 

“Nova Ordem Espacial” (2021), de Jo Sung-hee, levanta voo para além do que já se espera das histórias sul-coreanas, conservando a tradição de entreter e fazer pensar. O trabalho de Jo é considerado como a primeira grande tentativa da Coreia do Sul na categoria fartamente abastecida das produções ambientadas para além da Via Láctea, o que requerer investimentos maciços em computação gráfica e performances que segurem uma história plena das reviravoltas que esses filmes particularmente apresentam por duas horas ou quase. Seu surgimento justo em 2021, um ano marcado pelas inestimáveis perdas e pelos prejuízos homéricos na esteira da pandemia de covid-19 é uma evidência cabal de que o apetite da Coreia do Sul por competição é um seu ativo nada desprezível, colocado à prova sem qualquer pejo.

O roteiro de Jo, Yoon Seung-min e Yookang Seo-ae transporta a audiência para sete décadas adiante, num 2092 em que a Terra é pouco mais que um amontoado de sucata, padecendo de falta de comida e lutando para não colapsar de vez devido ao consumismo desenfreado que resultou no aprofundamento severo das diferenças sociais. Quem pôde foi viver no Éden, corpo celeste que orbita no perímetro do planeta outrora azul, pensado pela megacorporação UTS a fim de atender ao clamor de quem dispõe de muito dinheiro. O resto, os “varredores do espaço”, se vira coletando e vendendo tudo o que encontra flutuando no Sistema Solar — e é exatamente assim que ganham a vida Tae-ho, espécie de pirata do pós-apocalipse vivido por Song Joong-ki; a capitã Jang, de Kim Tae-ri; o anti-herói Tiger Park, personagem de Jin Seon-kyu, e Bubs, desenvolvido pela equipe de computação gráfica e dublado por Yoo Hae-jin. O cenário torna-se ainda mais conflagrado no momento em que se descobre que a humanoide Dorothy viajava clandestina na aeronave do bando. A personagem, interpretada por Park Ye-rin, costumava ser vista como uma singela garotinha de seus cinco ou seis anos de idade, mas na atual conjuntura é encarada como uma ameaça sem precedentes à integridade do que sobrou da espécie — a cena em que Dorothy dá um espirro e é tomada como um artefato de forte potencial destrutivo é muito bem sacada. Por trás da UTS, o magnata James Sullivan vivido por Richard Armitage, branco e inglês, fomenta as animosidades entre os tripulantes do último reduto de terráqueos, comentário sociológico que ganha força à medida que Jo conduz a história para o encerramento.


Filme: Nova Ordem Espacial
Direção: Jo Sung-hee
Ano: 2021
Gêneros: Ficção científica
Nota: 8/10