Michel Houellebecq contra a humanidade Foto / László Mráz

Michel Houellebecq contra a humanidade

Podemos ser qualificados de “humanos” graças à combinação de dor com aquela outra espécie de padecimento exclusivo de nossa espécie: a paixão. O homem é uma criatura essencialmente trágica, e seus dramas constituem desde sempre o alimento da arte. O motivo para o emplasto Brás Cubas é a própria condição do personagem machadiano, e mesmo um certo Fréderíc Hubczejak — personagem secundário mas decisivo do livro analisado — só existe para refletir sobre a humanidade porque é demasiadamente humano. Tão sensível à condição humana que propõe um dilema ético, de consequências paradoxais: o único remédio capaz de acabar com o sofrimento — e ele está pensando nos processos biológicos relacionados ao envelhecimento, à doença e à morte — é nos extinguir enquanto espécie. Esta introdução radicalmente sombria refere-se ao Epílogo de “Partículas Elementares” (1998), de Michel Houellebecq, traduzido no Brasil por Juremir Machado da Silva. 

Particulas Elementares
Partículas Elementare, de Michel Houellebecq (Editora Sulina, 296 páginas)

Houellebecq é o mais famoso escritor francês da atualidade. Autor de “Submissão” (2015) e “Serotonina” (2019). Por outro romance, “O Mapa e o Território”, o romancista recebeu o Prêmio Goncourt de 2010.  A recepção crítica no Brasil acusa pelo menos uma reticência: na opinião de Leda Tenório da Motta, “Houellebecq é o mais sobrevalorizado dos escritores a despontar na virada de século”. Chega mesmo a dizer que a aclamação do romancista é algo “constrangedor”. Talvez um único poema não seja suficiente para se falar num grande poeta, a menos que este poema tenha as proporções de “Folhas de Relva”, de Walt Whitman. Mas um único romance, pelo fôlego que requer, basta para se constatar um grande romancista: Tomasi di Lampedusa é o exemplo canônico. Permito-me, então, discordar de Leda Tenório, e tentarei justificar porque Houellebecq me parece um autor de alta categoria.

Para Hubczejak chegar à conclusão de que se deve extinguir a espécie humana é necessário um laboratório terrível, protagonizado, se se pode dizer assim, por duas cobaias: os irmãos Bruno e Michel Djerzinski, centrais à trama de “Partículas Elementares”. Ninguém, em nenhuma história, é tão trágico e portanto tão humano quanto essas duas criaturas expostas aos rigores da humanidade. Exatamente o emaranhado de sentimentos que os molda serviria de justificativa moral para o experimento revolucionário que proporcionaria o que o autor define como “terceira revolução metafísica”, conceito que remonta a Auguste Comte. A filosofia positivista, com a intuição fundamental dos três estados (o teológico, o metafísico e o positivo, base de uma nova filosofia da história) é uma das influências mais evidentes dessa narrativa que mal saberíamos em que gênero classificar, mistura de romance naturalista, ensaio histórico-sociológico e ficção científica.

Atuando em polos radicalmente opostos da existência, Bruno se tornará funcionário público e escritor; é viciado em sexo e representa a força dos instintos; Michel, protótipo do gênio, um cientista neurastênico, incapaz sequer de sentir prazer sexual com a mulher mais estonteante. Representa a razão. Não existe entre eles meio termo possível, daí a sensação de overdose que se abate sobre o leitor. Essa falta de equilíbrio abre espaço para que reine absolutamente a sensação de loucura — que é a loucura mesmo de uma geração decadente: a dos hippies, que lhes deu a mãe, posteriormente abandonando-os na infância. Juntos, Bruno e Michel representam um julgamento. “Partículas Elementares” é um livro extremista; extremista e talvez profético.

Segundo romance de Houellebecq, o livro divide-se em três partes, além do Epílogo e do Prólogo. O Prólogo é estranhíssimo: um misterioso autor apresenta-nos o biólogo Michel Djerzinski, esboça-lhe a época e, pela primeira vez, fala a respeito das “mutações metafísicas”: “Desde que uma mutação metafísica acontece, ela se desenvolve, sem encontrar resistência, até as últimas consequências. Varre, sem mesmo prestar-lhes atenção, os sistemas econômicos, os julgamentos estéticos, as hierarquias sociais. Nenhuma força humana pode interromper-lhes o curso — a não ser o aparecimento de uma nova mutação metafísica.”

Na perspectiva do livro, a primeira mutação da história foi o Cristianismo, a segunda cabendo à ciência moderna. Estruturador da narrativa, o esquema tripartite das mutações é a dívida que o autor contraiu de Auguste Comte. Desta maneira, o Cristianismo, apesar de ainda não ter sido superado, corresponde ao estágio teológico da humanidade. Mas Houellebecq inverte a ordem comtiana: na sua visão particular o segundo estado é o científico (que o filósofo francês chama de “positivo”). Com ele termina o ciclo humano, e o último progride somente numa fase em que deixamos de existir, como espécie, no final do livro. O Prólogo encerra-se com um poema em verso livre, em que o mistério a ser decifrado fica apenas sugerido: “Aquilo que era para eles do domínio do inacessível e do / absoluto, / consideramos como algo muito simples e bem conhecido”.

A locução “para eles” refere-se à raça humana, enquanto que o pronome demonstrativo “aquilo” é uma expressão metafórica para “imortalidade”. O autor em questão, pós-humano, está situado em 2089! Teoricamente a data não parece ser tão absurda para a concretização de um evento tão drástico como o da imortalidade. Pelo menos um certo biólogo futurista, Aubrey de Grey, não acharia essa tese tão absurda: o próprio Aubrey criou o conceito de “vida útil indefinida”, ou seja, a própria imortalidade alcançada pelo controle dos processos de envelhecimento. Deve-se sempre ter em mente, enfim, que boa parte dos malucos do passado viram referências no futuro.    

Submissão, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 256 páginas)

Uma síntese parcial de “Partículas Elementares” dá no seguinte resultado: os 15 capítulos da primeira parte, chamado de “O Reino Perdido”, fornecem a genealogia dos principais personagens do enredo, em particular Michel, Bruno e a mãe deles, Janine Ceccaldi. Interpretações psicanalíticas colocariam a figura materna no centro da trama, uma vez que, segundo a tese do autor, a origem “determina” inelutavelmente os acontecimentos posteriores da vida. A visão de Houellebecq é implacavelmente determinista, reverberando o naturalismo de Zola, citado duas vezes no livro. Um retrato dos pais de Michel e de Bruno é ligeiramente traçado. Janine (a precursora) é uma mãe irresponsável. Rica e intelectualmente refinada, perde a virgindade aos 13 anos e cultiva o ideal de liberdade pessoal da geração hippie. Casa-se duas vezes e arruma um amante principal, Francesco di Meola, que lhe divide com vários outros homens. Bruno e Michel são filhos de pais diferentes, e são sucessivamente abandonados pela mãe ainda bebês. Entregues aos avós, o primeiro deles acaba num internato.

Deparamos, então, com a infância e adolescência de Bruno e Michel. A de Michel é mais tranquila e o menino evidencia forte inquietação intelectual. Não é gregário e lê muito, adquirindo prematuramente uma concepção terrível da vida animal: “tomada em conjunto, a natureza selvagem não era mais do que uma repugnante imundície”. Já a infância de Bruno é verdadeiramente traumática. Humilhações impingidas por colegas do mesmo sexo lhe marcarão para sempre. Sai-se mal na comparação com meninos fisicamente mais aptos, principalmente na disputa com as garotas, que aliás o aterrorizam, “inacessíveis”. Marca-o também, além dos estigmas físicos, a promiscuidade sexual da mãe, despertando-lhe desejos incestuosos. Tudo isso explicaria a perversão sexual e a infelicidade do homem adulto, que termina internado numa clínica psiquiátrica. Curiosamente não se mata, num livro com altos índices de mortandade.

A Segunda parte de “Partículas Elementares”, traduzida como “Momentos Estranhos”, é, em grande medida, uma imersão no universo das taras e perversões sexuais do adulto Bruno, contadas em detalhes picantes. Conclui-se com a morte de Janine, numa clara referência à mãe primordial, Eva: “Pouco antes da entrada do cemitério, uma cobra apareceu entre dois arbustos, no costado do muro. Bruno mirou e atirou com todas as forças. Errou por pouco”.

Assim ficamos sabendo que a história dos dois irmãos é, afinal de contas, a história da perdição de toda a humanidade. Nessa parte do livro Houellebecq apresenta-nos o Espaço da Mudança e o centro naturista de Agde. Limitarei a comentar o primeiro, uma extensa área de camping para nudistas criado em 1975 no “espírito” da geração de 68.

O projeto é “fortemente marcado pelos ideais libertários”, destinado a “instalar uma utopia concreta”, segundo os “princípios de autogestão, do respeito à liberdade individual e da democracia direta”. Os acontecimentos narrados se passam na primeira metade dos anos 80, quando Bruno, depois dos 40 de idade, procura o local para satisfazer suas perversões sexuais. Houellebecq expõe de que forma, em apenas quinze anos, a decadência financeira corroeu todos os valores originais da comunidade hippie, transformando a experiência original num “centro New Age relativamente na moda”. Por um lado, os frequentadores mudaram: o pessoal antigo raleara, cedendo espaço aos jovens. Bruno sente na pele a discriminação em função da idade: “Parte de uma geração que — pela primeira vez num grau tão elevado — proclamou a superioridade da juventude sobre a idade madura, quase não podia surpreender-se, por seu turno, de ser desprezada pela geração chamada a substitui-la”.

A filosofia também mudou: o Espaço da Mudança tornara-se empresa rentável. Agora fornece seus serviços em gestalterapia, PNL, meditação zen etc., aos departamentos de recursos humanos de grandes corporações internacionais, interessadas no desenvolvimento pessoal de seus funcionários. Adere, irresistivelmente, ao universo do consumo e da publicidade capitalistas. Ali persistem o misticismo exotérico, pirâmides mágicas e cristais milagrosos, num clima de (auto-)tapeação onde, no fim das contas, ainda é possível obter prazer sexual de forma libertina. A orgia é autorizada tanto no Espaço quanto em Agde, mas só intensifica no leitor a sensação de vazio existencial, explicando o pessimismo de Bruno. Certa noite, numa piscina, ele conhece o prazer sem limites em contato com Christiane, durante uma felação numa Jacuzzi (imagem do útero materno?). Alma gêmea, Christiane será sua parceira definitiva. A “plenitude” alcançada com ela tem a ver com o seguinte: praticamente não se enxergam durante o ato, excluindo o critério de seleção narcisista dominante na sociedade, identificado com a beleza física.

Em linhas gerais, Bruno se relaciona com outras mulheres ao longo da trama, nenhuma delas, como ele próprio, muito atraente. Casar-se-á e procriará, antes de reencontrar-se com Christiane. Será convertido por um tempo ao catolicismo. Duas de suas amantes cometem suicídio, entre outras mortes violentas e muito tristes, tudo para provar o horror desta vida e a necessidade de uma “cura”, que vem a ser a terceira revolução metafísica. Bruno escreve verdadeiros ensaios de sociologia, desnudando o universo da sexualidade social-democrata em que vive. É, porém, preterido pelos editores, em função de posições políticas inconvenientes para os interesses em jogo. Por sua vez, a vida amorosa de Djerzinski só conhece uma parceira: a linda e persistente Annabelle, com quem constitui uma relação morna e indefinida do início ao fim. O começo do namoro indica um futuro complicado. Na ausência do namorado, e carente, ela se deixa seduzir por David di Meola — filho de Francesco, o padrasto de Bruno — e comete o primeiro aborto. Adiante, veremos David se transformar num mostro.

Quem gosta de terror vai saborear o capítulo 15 da Segunda parte, assustador porém crucial, de sorte que exprime aquele julgamento supracitado, da geração de 68. Nele, Houellebecq descreve a sociopatia como derivação moral dos valores partilhados por hippies e movimento beatnik: “os seriais killers dos anos 90 eram filhos naturais dos hippies dos anos 60”. Por trás de uma série de crimes hediondos encontra-se uma seita satânica ligada ao movimento New Age, sintoma “da decadência sociológica e moral na qual se afundava a sociedade americana desde o final dos anos 50”. Não sei como escapou a Leda Tenório a conclusão, ao ler este capítulo, de que a superação das inibições morais, no limite, não coincidiu com a liberdade mas com o crime e o materialismo absoluto, personificados em David. “É o que eu faço: mostrar os desastres produzidos pela liberalização dos valores”, dirá Houellebecq em entrevista à “Paris Review”. Será este o “conformista” que a crítica literária enxergou?

Serotonina
Serotonina, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 240 páginas)

A Terceira parte de “Partículas Elementares”, “Emoção sem Limites”, expõe as intuições fundamentais de Djerzinski sobre o controle da evolução biológica. De acordo com ele, a física destruiu a metafísica materialista e permite ao homem um novo salto espiritual, que consiste em descobrir “as condições de estabilidade estrutural ao nível subatômico”, do DNA. Está a um passo de vencer a morte física; a um passo da ficção científica. No curso dos acontecimentos, Janine, Francesco e Annabelle morrem de câncer. Em um momento raríssimo de compromisso afetivo, o gélido Djerzinski devaneia ter um filho com Annabelle. É quando ela descobre a doença e sofre novo aborto (o terceiro). O processo é traumático e doloroso, arrancando-lhe o médico os órgãos reprodutores. Na sequência, naquele que é o capítulo mais poético da obra, ela se mata: “…uma bifurcação produziu-se no seu corpo, imprevisível e injustificada, impedindo-o de ser fonte de prazer e alegria; ao contrário, tornar-se-ia, rapidamente, para ela e para os outros, fonte de incômodo e de infelicidade. Logo, cabia destruí-lo”.

Djerzinski tem da vida um conceito frustrante, “uma inadmissível brincadeira de mau gosto”. Chora pela ex-amante porque é humano, mas aceita tudo com absoluta resignação, sempre procurando racionalizar as condições biológicas por trás do sofrimento. Perdidas a avó e a mãe, novamente conhece a “potência do vazio”, com o desaparecimento da namorada. Ainda não usei a expressão amor, mas não é por acaso: nem Bruno nem o irmão chegam de fato a sentir amor. Apenas Annabelle sabe o que é isso, mas é o retrato acabado da desilusão. Após sua o namorado repete o percurso real de Houellebecq e muda-se para Clifden, na Irlanda, onde trabalhará pelo resto da vida. É auxiliado por Walcott, que ouve as histórias do francês e comenta: “Pode-se encarar as coisas da vida com humor durante anos, por vezes durante muitos anos; em alguns casos, praticamente até o fim; mas, definitivamente, a vida parte o coração”.

Michel Houellebecq
Michel Houellebecq: o mais importante escritor francês da atualidade

O último capítulo da Terceira parte abre-se com um estranho poema, escrito após a terceira ruptura metafísica, quando já não existe dor e sofrimento: “Afastamos / Com indiferença / E sem nenhum esforço / Esse universo de morte.” A “era materialista” — compreendido entre a Idade Média e 2029 (ano da experiência que gera o novo ser) — chegara ao fim. Antes disso, narra-se em tom biográfico a última fase da vida de Djerzinski. Sua obra decisiva fora escrita em 2002 e estabelece a tese de que “a separação cromossômica ocorrida no momento da meiose, gerando gametas haplóides, era, em si mesma, uma fonte de instabilidade estrutural; em outros termos, que toda espécie sexuada era necessariamente mortal”. A ciência não se furtaria a alterar o curso da evolução natural, a fim de combater esse processo, sobre o qual a imaginação de Houellebecq construiu “Partículas Elementares”. Ainda há muito a ser dito sobre este livro. Só não poderíamos deixar de citar outra sentença de Djerzinski: “o materialismo era, no fundo, incompatível com o humanismo e acabaria por destruí-lo”.

Na visão do escritor o materialismo explica o secularismo, a ideologia New Age e a sociopatia de uma geração, deixando entrever uma preocupação ética. Houellebecq torce o nariz para tudo aquilo, encarnando sua insatisfação num cientista genial, à procura de “algo mais”, capaz de restabelecer o amor entre os homens. Desde a descoberta da física quântica até a leitura de textos budistas (“Book of Kells”), um halo de transcendência acompanha Djerzinski até o seu desaparecimento. Apesar do fatalismo determinista, ligado ao passado, as intenções deste biólogo para o futuro não parecem apocalípticas: não se trata de um gênio do mal. Mas é claro: ficamos naturalmente assombrados com suas previsões e as de seu entusiasmado continuador: Fréderíc Hubczejak — aquele que mencionei no início. Além de adotar Comte como base gnoseológica, Houellebecq diz que sua “verdadeira inspiração foram as experiências de Alain Aspect em 1982”. Portanto, a física subatômica, com suas ressonâncias místicas: afinal, “tem que ser menos deprimente do que o materialismo”. Isso desmente a sugestão pulsante de que Houellebecq possa ser apenas um niilista interessado em assuntos vulgares.

A ficção científica é muito importante para a formação de Houellebecq, leitor de H. P. Lovecraft na infância. O inglês Aldous Huxley não fora apenas um dos ideólogos da geração hippie, paladino da liberdade sexual e do uso das drogas psicodélicas. Parece fornecer a Houellebecq pelo menos um motivo fundamental: o controle da procriação através da evolução técnico-científica, tão na moda hoje em dia. Além disso, “A sociedade descrita por ‘Brave new world’ é uma sociedade feliz, livre da tragédia e dos sentimentos extremos”. Este pensamento é de Bruno, mas desvenda toda a angústia pessoal de Michel, interessado em compreender e superar, ao menos do ponto de vista genético, a tragicidade da vida humana. Segundo Leda Tenório, o escritor não se acanha de apelar, bem na nossa frente, para todas as soluções de facilidade que os formulários das ficções mais vendidas têm presentemente a oferecer.

Com “facilidades” quer dizer sexo explícito, óbvio. Para se ler sem preconceito tais cenas, abundantes no livro, é necessário voltar à poética realista do século 19. Escritor de formação científica (é agrônomo), Michel Houellebecq escreve “Partículas Elementares” como se escrevesse uma tese. Até nisso se parece com os autores franceses de outrora. Em boa parte da obra, a técnica que adota é descritiva, mas está longe de se reduzir à pornografia ao narrar práticas sexuais. Houellebecq seria mal escritor não por ter escolhido um tema ainda meio tabu, e sim se escrevesse realmente mal, o que está fora de questão. Enquanto Balzac e Flaubert preferiram pormenorizar cenas e ambientes domésticos, Houellebecq optou por algo, ao contrário do que se pensa, dificílimo (pouco importa se coincidente com as preferências do mercado): pintar um homem e uma mulher trepando, o que corresponde ao mais elementar dos nossos instintos. O que o impediria de fazê-lo para leitores adultos, senão restrições discutíveis que nada têm a ver com problemas estéticos — justamente os que mais interessam ao artista? Parece, até, que nada pode ser mais belo e desafiador para a linguagem do que retratar Eros em ação. 

Soa moralismo argumentar que é desnecessário para a economia da obra entrar nas particularidades anatômicas do sexo, já que a sexualidade é parte fundamental da vida. O autor não é apelativo por isso: o tema em si é polêmico — o que não o torna poeticamente indigno. O que assegura essa escolha é que a lubricidade no romance é coerentemente articulada com implicações metafísicas, que dela tanto dependem. Apesar de todo hedonismo que corresponde a relações humanas transformadas num bacanal digno de Calígula, Houellebecq é um escritor profundo, e a base dessa profundidade é um paradoxo muito bem explorado: a experiência sensível — cujo ápice é o ato sexual — é insuficiente para garantir a felicidade humana. Também para Houellebecq o sexo é, além de prazeroso, motivo de tragédias pessoais e coletivas, origem natural das mutações genéticas, do câncer e da morte. Raíz, portanto, de nossas maiores ansiedades.

A vida eterna é a grande obsessão da humanidade e a grande promessa do Cristianismo. Liga-se umbilicalmente à religião. É também o sonho contido em “Partículas elementares”: com ou sem a ideia de Deus, Houellebecq busca a imortalidade física, e lhe parece que nossa única esperança de a alcançar reside nos avanços da tecnologia. Djerzinski antecipou na ficção o sonho de Aubrey de Grey, um biólogo maluco de carne e osso, que anda por aí.