Leve, fofo e encantador, anime filosófico sobre o amor é um dos filmes mais bonitos da Netflix

Leve, fofo e encantador, anime filosófico sobre o amor é um dos filmes mais bonitos da Netflix

O amor sempre demanda sacrifícios, mesmo quando ainda não é hora. Todos vivemos paixõezinhas de infância, que quase sempre não dão em nada; ainda assim, não passa pela cabeça de ninguém se resignar em ser preterido ou, pior, simplesmente desprezado por quem julga amar. É aí que surgem as primeiras dúvidas quanto ao mais humano dos sentimentos, e a mais elementar de todas se refere à suposta natureza individualista do amor. É mesmo possível amar sem ser amado? Como se livrar com humanidade de alguém que nos dedica um amor claramente genuíno, ingênuo, devocional até, a que não podemos corresponder? O que fazer para preservar a compostura diante de gente disposta a nos arrostar de maneira gratuita,  só porque atraímos o bem-querer de mais  gente, e de com mais fervor? Amar é, obrigatoriamente, um exercício de maturidade: em não se estando preparado para entender as necessidades do outro (e, esticando-se um pouco a corda e buscando o exagero que todo amor merece) ver as imperfeições de quem se ama como virtudes, nada feito. Como se nota, amar não é tão simples quanto Hollywood diz.

Os japoneses Junichi Sato e Tomotaka Shibayama usam de uma metáfora poderosa para discorrer sobre a importância de se pensar o amor desde suas manifestações mais primitivas em “Olhos de Gato” (2020), apólogo para gente pequena e gente grande e crianças de qualquer idade, mesmo as entradas em anos. Fazendo justiça à tradição, os animes, as animações feitas no Japão, quase sempre por artistas nipônicos, exaltam algo em nós que muitas vezes nem nós mesmos somos capazes de definir o que é. Pode-se dizer que talvez seja uma nostalgia boa, nada doentia e muito estimulante, acerca de boa parte do que se passou conosco nos nossos verdes anos, tempo em que tudo está guarnecido do verniz dourado que nos impede de precisar a exata dimensão das coisas, o âmbito de drama e mesmo de tragédia em nossas relações e em nossos afetos. Os japoneses vêm se destacando no ramo desde 1958, momento em que Taiji Yabushita (1903-1986) e Kazuhiro Okabe lançaram “A Lenda da Serpente Branca”, sobre uma cobra que encarnava o feitio de uma bela princesa. Desde então, a arte de falar das agruras do homem do modo mais leve se aprimorou, conservando a natureza eminentemente pueril do enredo. Os desenhos japoneses deram as boas-vindas ao século 20 com “A Viagem de Chihiro” (2001), de Hayao Miyazaki, ainda hoje um dos melhores filmes do gênero, e nas últimas duas décadas, o aperfeiçoamento da computação gráfica certamente foi um dos fatores que contaram para a maior divulgação dessas histórias, que caíram no gosto do público ocidental.

Dublada por Mirai Shida, Miyo se descobre enamorada de Hinode, que ganha vida pela voz de Natsuki Hanae. Além de ser jovem demais para isso, Hinode não tem interesse algum por ela, mas os dois partilham de algo em comum, o gosto por felinos. Desajeitada, Muge — acrônimo para Miss Ultra Gaga e Enigmática, como os colegas maldosamente a chamam — conhece o avô de Hinode, um ceramista talentoso cujo ofício está ameaçado pelo desinteresse das pessoas em atividades manuais. Ao colocar no rosto uma máscara de gato, se lhe revela uma grande possibilidade quanto a ser correspondida pelo garoto. Transportada a um mundo paralelo habitado exclusivamente por gatos, ela se dá conta de que fazer com que a atenção desse possível namorado se manifeste é uma vontade para muito além de suas aptidões. O contato com o Vendedor de Máscaras, o gato imenso e gordo que torna-se o grande vilão do roteiro de Mari Okada, corrobora suas impressões quanto ao engano de querer ser outra para ter o coração de Hinode.

Estabelecendo uma curiosa relação entre pessoas e bichanos, “Olhos de Gato” abusa do nonsense, especialmente apropriado em filmes dessa natureza. Felinos gigantescos e seres humanos apequenados se dividem num mundo dia a dia mais resoluto em sua marcha rumo à acracia, onde cada um salva a si mesmo dispondo de sua própria noção de amor, abundante na infância, mas que se vai esgarçando a pouco e pouco ao longo da existência. E, ao contrário do que sucede aos gatos, para nós a vida é uma só.


Filme: Olhos de Gato
Direção: Junichi Sato e Tomotaka Shibayama
Ano: 2020
Gêneros: Fantasia/Romance/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.