Talvez todos nós nos lembremos de um escritor, quando chamados a buscar na memória aquele que primeiro nos impressionou, na vida. O nome que tenho em mente é o de Jorge Luis Borges, que sempre imagino ter lido antes de qualquer outro. Foi, também, o que me ficou como parâmetro de boa, de grande literatura; a descoberta desse mundo mágico, fantástico, dos livros. Durante um bom tempo, achei que ninguém no mundo escrevia melhor do que ele, talvez porque me identificasse com seu estilo, tão característico, e com problemas metafísicos. Naturalmente, descobri que há autores tão bons e até melhores do que Borges, mas me recordo dele com maior carinho do que de qualquer outro.
Sempre ouvimos falar de Jorge Luis Borges, o grande ficcionista argentino, como autor de contos fantásticos. Foi como se celebrizou, ao lançar a coletânea “Ficções”, em 1944, na qual se encontra o famosíssimo “Pierre Menard, autor o Quixote”. Como contista, Borges é amplamente devedor de Kafka, embora sempre se fale de sua formação literária como especificamente inglesa. Além de contos, relatos e ensaios memoráveis, Borges foi também um notável poeta — e começou como poeta —, um meticuloso artesão da palavra, sendo portanto curioso que nos reportemos a ele sem nos lembrarmos desse fato. Teve, nesse particular, a mesma sorte que Machado de Assis. O brasileiro, na coletânea “Ocidentais”, escreveu poemas tão bons quanto Álvares de Azevedo (de acordo com José Guilherme Merquior, em “De Anchieta a Euclides”), e ninguém parece saber disso, senão os críticos. É um erro, imagino, esquecer de um escritor a parte menos célebre de sua produção, pois aí do mesmo modo podemos encontrar várias relíquias. Para entender: fosse apenas poeta, arrisco a dizer que Borges seria já um dos primeiros nomes das letras hispânicas e quiçá do mundo.
Borges tinha perceptivelmente uma angústia terrível em relação ao tempo. Era obcecado por este tema. Rio e Areia são figuras marcantes em sua obra poética, e boa parte de sua poesia é uma variação dessa obsessão, que conduz à certeza da própria aniquilação:
Dos ciclos toda a areia é sempre a mesma
pois é infinita a fábula da areia;
e sob as tuas ditas e desditas
a eternidade incólume se abisma.
(…)
Não vou salvar-me eu, fortuita coisa
de tempo, que é matéria degradável.
De outro poema, não por acaso chamado “Heráclito”:
Que rio é este
pelo qual corre o Ganges?
Que rio é este, cuja nascente é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta espadas e mitologias?
São imagens fortes e precisas, alguns dos versos mais belos que há escritos sobre o tempo e a corrosão de nossas vidas. Na coletânea “O Fazedor”, temos alguns poemas que revelam um Borges cultor das formas tradicionais de composição, lembrando-nos nosso Manuel Bandeira, que, embora modernista, não desamparou os esquemas métricos cultivados no passado. Vemos isso no poema Arte poética, revelador de um artista cujo credo último foi a arte, onde se resguardou do mundo e de suas mazelas corruptíveis:
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.
Reiterado nesses versos de exímio sonetista, em homenagem a Camões:
Quero saber se aquém dessa ribeira
Última compreendeste humildemente
Que quanto foi perdido, o Ocidente
E o Oriente, a têmpera e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
Borges, ao contrário de outro gigante latino-americano, Octavio Paz, não foi homem de ação, como bem lembrou o crítico uruguaio Emir Rodriguez Monegal, em “A poética de Borges”. Era um cético, que parecia não acreditar que pudéssemos ser os responsáveis pelo nosso próprio destino, traçado pelos deuses ou por Deus. Não dava muito importância à história e a peleja humana, exceto como mistérios de nossa condição. Daí seu conceito de que “A história universal talvez seja a história da diferente entonação de algumas metáforas”. Não é à-toa que outro tema eleito por sua poesia seja o destino, que nos conduz ao seu bel prazer sem que possamos oferecer-lhe resistência; sem que possamos fazer nada. Borges não parecia acreditar, de jeito nenhum, no livre arbítrio. O passado, e não o futuro, é que era o tempo em que acreditava — se é que este discípulo dos empiristas acreditava em algum. Eis um encadeamento revelador dessa convicção:
É de ferro teu destino
como juiz.
do poema “Labirinto”, e dois versos no mesmo diapasão de outro, “Xadrez”:
Que Deus atrás de Deus o ardil começa
De pó e tempo e sonhos e de agonias?
Platônico, nada nele é real ou tem sentido por si mesmo: tudo é símbolo; tudo remete a outra coisa, tudo é reflexo, projeção, espelho de outra realidade, uma supra realidade, provavelmente melhor do que esta, desbotada e melancólica. Dizia que queria morrer completamente. Não, não era otimista, mas tinha o poder de encantar, de tocar o que há de mais nobre em nossa sensibilidade. Dizem que “O golem” é seu melhor texto lírico — cujo teor é cabalístico —, mas, de todos os poemas de Borges que conheço, o que mais me emociona é “Outro poema dos dons”, que diz assim, entre outras coisas:
Graças quero dar ao divino
labirinto dos afetos e das causas
(…)
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade
(…)
pelo mistério da rosa
que pródiga cor e que não a vê…
Embora refratário à história e à luta — se tanto, desenhava indivíduos armados ou bandoleiros, como os irmãos Iberra e como Jacinto Chiclana — e tenha feito de si um lírico, Borges é o nosso Homero, digo, o Homero da latinidade americana. Como sabemos, também foi cego, e prodigou-nos imagens de sonhos e de rara beleza. Ele certamente teria muito orgulho em ser identificado como poeta, mesmo que ficasse só como autor de ficção. Poeta é certamente o título mais honroso que se dá a um artista (não só escritores), síntese — ou símbolo — do próprio trabalho artístico, que consiste em criar. Borges foi um, no mais pleno sentido da palavra. Privilegiados os que leram sua poesia.