Um garoto impulsivo começa a sentir o peso da vida adulta, cheia de situações pautadas por escolhas, ou seja, por afinidade a um determinado estilo de vida ao passo que se renuncia a todos os outros. Esse garoto acaba passando dos limites ao dar vazão a seus instintos e se envolve numa questão que sua imaturidade violenta não alcança. Vai parar na cadeia, onde cozinha seu plano de vingança; contudo, ao deixar o cárcere, encontra boas razões para colocar de lado o anseio por reparação que o consumia. Agora, ele está muito mais interessado em descobrir um jeito de fazer com que seu caminho torne a se cruzar com uma certa mulher, a mulher que conseguira virar-lhe a cabeça. O problema é que ela está casada com o sujeito que fizera vítima de um castigo injusto, desproporcional e permanente, o que faz com que ele, além da besta indomável como sempre fora visto, seja também um grande inconveniente para a harmonia conjugal de dois casais aparentemente felizes. E ele mesmo reconhece, depois da temporada de reclusão compulsória, que deveria rever suas intenções, mas o desejo sempre vence. E ele está disposto a convencê-la a jogar tudo para o alto para que os dois vivam esse amor insano, quiçá doentio.
Isso tudo é Pedro Almodóvar, no momento paroxístico de sua obra, atingindo o zênite de seu potencial artístico com “Carne Trêmula” (1997), melodrama pleno dos tons conspícuos que estampam os personagens e dos desejos reprimidos que lhes revestem a alma, ora genuínos, e, portanto, dignos de serem perseguidos, ora amaldiçoados, eivados de toda espécie de condenação, mas que nem por isso são abandonados. As pulsões de vida e de morte nessa história vêm encarnadas em Víctor Plaza, de Liberto Rabal, filho de uma prostituta que se atreve a nascer numa noite de silêncio avassalador em Madri. Era janeiro de 1970, a ditadura Francisco Franco (1892-1975) punha em marcha seus desígnios ainda mais autoritários e pelos próximos vinte anos a Espanha mergulha numa noite que se mostra mais e mais sinistra. Quando Franco morre, se encerrando assim o ciclo de barbáries perpetradas por sua figura lamentável, Víctor, no despertar de sua virilidade, tem pressa de, como seu próprio país, recuperar o tempo perdido. Permitindo que recrudesça a natureza desabridamente violenta de seu roteiro, coescrito com Jorge Guerricaechevarría — também autor do eminentemente almodóvariano “Perfeitos Desconhecidos” (2017), de Álex de la Iglesia — e Ray Loriga, o diretor faz do filme a sequência de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), manifestando aqui toda a violência que recalcara no antecessor.
O anti-herói de Rabal não se peja de passar por cima da dignidade de quem quer que seja a fim de conquistar Elena, vivida por Francesca Neri, com quem tivera o brevíssimo romance de uma noite só que deixaria marcas profundas nos dois. Nas cenas em que Almodóvar propõe o reencontro dos dois, na sala da casa de Elena, vão aparecer também David, desempenho acachapante de Javier Bardem, acompanhado de Sancho, personagem de Pepe Sancho. David e Sancho são policiais e quanto mais a presença dos dois se prolonga, mais certo o desfecho trágico que se vai assistir. É com essa tragédia que nasce o relacionamento de Elena e David, uma forma que ela encontra de aplacar o remorso pelo que ocorrera, ainda que saiba que nunca poderia esquecer Víctor. Também nessa sequência está a explicação para a reviravolta já no segmento final, momento em que Clara, a mulher de Sancho vivida por Ángela Molina — e amante de Víctor —, conduz a trama para um clímax sem lugar para ilusões românticas.
Almodóvar sabe como poucos falar das contradições humanas, amenizando o peso do drama em sua narrativa mediante o uso explícito da hipérbole, do exagero, corporificado em cores vibrantes, diálogos friamente pensados, mas espontâneos, e de alguma pornografia. “Carne Trêmula” atravessa os anos sem acusar nenhum abalo por parte dos tantos arrasa-quarteirões sem alma que nunca deixarão de pulular em todo o mundo. Almodóvar é pura alma, e “Carne Trêmula” é também muito mais alma do que carne.
Filme: Carne Trêmula
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 1997
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 10/10