Um dos filmes mais aguardados de 2022, comédia de ação com Kevin Hart acaba de estrear na Netflix Sabrina Lantos / Netflix

Um dos filmes mais aguardados de 2022, comédia de ação com Kevin Hart acaba de estrear na Netflix

Dois homens nada parecidos têm as histórias cruzadas depois que um deles vai parar na casa em que o outro já está — argumento confuso, decerto, mas também elucidativo. Mal-entendidos nunca são o bastante em enredos em que a realidade é feita de equívocos tolos que por seu turno degringolam em situações verdadeiramente complexas, aditivadas por tensão e perigo. Indivíduos comuns, cuja banalidade afronta o mais simplório dos homens, passam por matadores de aluguel, assassinos impiedosos que levam seu ofício a sério e não dispõem de tempo nem de vontade para brincadeiras ou outras dispensáveis interações sociais. Evidentemente, hão de surgir lances cômicos em tamanha barafunda, uma vez que o facínora gosta de mencionar poetas do século 19, e faz de seus versos o código com que se identifica. O outro, se tanto, domina a arte de vender os planos da academia do melhor amigo, mas começa a perceber que tem condições de ir além caso absorva a estranheza daquele universo diferente, pleno de outras cores, muito mais grotesco do que ele supusera, ao passo que encantador também.

O absurdo sem maiores consequências desse encontro fortuito ganha dimensões incontroláveis em “O Homem de Toronto” (2022), comédia em que o diretor Patrick Hughes junta temas aparentemente desconexos, mas que se interligam, graças ao absurdo das situações que se deslindam pouco a pouco. Teddy Nilson, o atrapalhado anti-herói encarnado por um Kevin Hart naturalmente engraçado, decide passar uns tempos num chalé rústico num lugar bucólico em Onancock, na Virgínia, sudeste dos Estados Unidos, mas devido a um defeito da impressora — boa sacada do roteiro de Chris Bremner e Robbie Fox —, não distingue o número do imóvel que o contrato especifica. Bate à porta de Randy, um vilão de personalidade instável, muito bem desenvolvido por Woody Harrelson, que enxerga na estranha coincidência a oportunidade de uma aposentadoria milionária, quando poderá, enfim, livrar-se da chefe obsessiva, interpretada por Ellen Barkin, deixar para trás a exasperante rotina no crime e abrir seu restaurante cinco estrelas. Por óbvio, aparecem percalços no caminho: Teddy não é exatamente um bastião de coragem, mas sua tibieza de espírito choca o pragmatismo sanguinário de Randy, que precisa ensinar o beabá da máfia ao novo candidato a discípulo.

Hughes constrói seu filme de modo a fazer com que o desconforto que permeia a relação entre os personagens de Hart e Harrelson ceda lugar a uma amizade genuína, em que pese o temperamento antissocial de Randy, que só consegue dispensar carinhos ao Dodge Charger 1969 440 R/T, que ele chama de Debora; Teddy, por sua vez, é o típico americano tranquilo, inabalável em sua fé na humanidade e muito satisfeito com o trabalho medíocre, que lhe possibilita viver em relativo conforto com a mulher, Lori, interpretada por Jasmine Matthews. Mesmo assim, se unem no enfrentamento aos bandidos mais bem treinados do mundo, a começar pelo Homem de Miami, de Pierson Fodé (guarde esse nome) numa transição esmerada da trajetória de galã para trabalhos mais exigentes. Maggie, a melhor amiga de Lori, vivida por Kaley Cuoco, entra em cena como a coadjuvante de luxo, enchendo a tela com tiradas cínicas sobre o relacionamento da personagem de Matthews, que sempre passa o aniversário de casamento sozinha.

No segundo ato, o texto de Bremner e Fox inclui a menção desnecessária a um tal Sebastián Marín, de Alejandro de Hoyos como o corrupto presidente da Venezuela, a fim de, quiçá, atenuar uma possível futilidade — como se um filme não pudesse ser “apenas” divertido, sem maiores pretensões, e fosse obrigado a apresentar uma questão ideológica qualquer, um tema pretensamente sério que o cacifasse para premiações e outros galardões que tais —, o que se revela uma ameaça ao bom andamento do que se vinha assistindo até então. Felizmente, “O Homem de Toronto” volta ao leito, mostrando a que veio com suas incontáveis reviravoltas cheias de perseguições, trocas de socos, dublês detalhadamente ensaiados e marginais que leem Yeats.


Filme: O Homem de Toronto
Direção: Patrick Hughes
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.