O tempo do ser. O tempo que importa

O tempo do ser. O tempo que importa

Não é importante que fiquem muitos em sua jornada. É importante que fiquem os que a semeadura do tempo deixar, eles que colhem suas fraquezas e defeitos como o boticário colhe o orvalho de certas flores para delas fazer seu alquímico aroma, poder de transformar uma gota que cai do céu em um perfume inesquecível.

As personalidades são assim, perfumes inesquecíveis, mas mutáveis e submetidos à força do tempo, que talvez mereça também sua reavaliação: do tempo destruidor de Aristóteles, para o tempo criador e cheio de linguagem de Martin Heidegger.

Há muitos tempos ao redor de nós. Há muitos tempos dentro de nós. Há alguns poucos tempos que não estão fora nem dentro, mas acima. Temporalidade. Extratemporalidade. Supratemporalidade.

Temporalidade: os dias que se sucedem na velocidade de uma imaginária correnteza que faz a idealista roda de água girar eterna, na mesma velocidade, para sempre: os sete dias da semana, as vinte e quatro horas do dia, os minutos das horas: vida esmigalhada em frações de segundos em que negociamos o preço para existir.

A extratemporalidade: aquele momento em que a cena do filme de nossas vidas muda o ritmo do relógio pequeno e poderoso que trazemos no bolso: o beijo que para o instante, a prosa com os amigos nas quais gostaríamos que tempo não houvesse para encerrá-la; o afago da mãe, a conversa meditativa com o pai, o contemplar do sono do filho quando pequeno: a força do relógio se derrete e por mais que ele exista, perde força sobre nós; é quando dizemos: nem vi o tempo passar.

Martin Heidegger: um dos filósofos mais originais e importantes do século 20 | Ilustração: German Vizulis / Shutterstock

E a supratemporalidade: quando transformamos esses momentos de suspensão do tempo em alguma coisa material que seja capaz de resgatar aquele instante inesquecível: um bilhete que guardamos do filme que assistimos com o ser amado; a rolha da garrafa do vinho que tomamos na visita que fizemos ou recebemos de um amigo fraterno; se pudermos, o quadro que pintamos, o poema que escrevemos, a obra que deixamos, que, ao ser revisitada recupera o tempo como os aromas trazem de volta a casa materna, a comida avó, o cheiro do pai que já se foi, o perfume outrora amado e que não retoma o amor, mas nos faz ver a vida como uma metáfora de nós mesmos em busca de nossa essência: quem eu era naquela época em que esse perfume me inebriava? Quem me tornei hoje, em que ele me é indiferente? E como a metáfora compara elementos distintos formando um terceiro, vemos um novo de nós mesmos nascer pelo perfume acidentalmente sentido nas passagens das ruas: entre quem eu era e quem eu sou há uma unidade metafórica que me assemelha e me diferencia, dentro do tempo: a isso chamamos essência de nós mesmos: o que fica e permanece, quando passa o tempo? Essa essência.

Os amigos que vão costumam ser chamados de simulacros, de subtração da verdade da vida, apenas porque passaram. Mas não. Podem ter passado e, enquanto estavam em nós, terem nos dado toda a verdade de que dispunham, mas agora, desocultada, pelo passar do tempo, a essência da vida de ambos, os caminhos tomaram trilhos diferentes. Os reencontros inopinados fazem surgir sorrisos de saudade, da época da afinidade estreita, e quem éramos naquela época. O passar é da vida. Só o tempo permanece, e passando na inapreensão do presente que, quando chamo de presente, deixou de ser presente e se tornou passado de milésimos de segundos, mas passado. Somos seres de depois.

A permanência, com sua feição de verdade absoluta, paira sobre o imaginário coletivo como sinônimo de síntese da verdade: a amizade que dura é a verdadeira. O amor que dura. A personalidade que dura. Mas não. Verdadeiro é somente aquilo que foi. Se, quando o compasso que desenhou o círculo do infinito que repousa sobre nós, fez a amizade, o amor, a persona serem autênticos enquanto tinham que ser, a verdade fez ninho ali, e voou deixando o passado nas batidas de suas asas cujo som reboam risadas, lágrimas, discussões, declaração de amor e lealdade eternas.

Mas só pode haver isso se houver linguagem. O homem, quando se pronuncia, não traz ao mundo somente verdades. Traz a aparência na cor da palavra; traz sabor no sabor dela, e peso em sua densidade, e é típico da palavra que ela fale pelo não dito, pelo ocultado, pelo resguardado, pelo simulado que, em seu reverso carrega a essência que alimentou a fome por uma imitação de nós mesmos que não é a real: a simulação é do ser humano, porque não nos damos — e nem devemos ou podemos — a todos nos dar. A joia é preciosa porque há pouca no mundo e poucos as possuem; as joias de nossa persona devem ser guardadas em cofres cujo segredo só você e o você de você mesmo, com o qual conversa quando fala consigo, saibam.

Há portanto, em todos nós, uma ligação sinuosa, perspicaz, entre sermos verdadeiros em nossa essência e realistas em nossa aparência, que nos faz rir quando não queremos e segurar o choro porque a vida é dura e é preciso ser forte.

O rebento de nossa essência se revela na percepção, no desvelamento dos vários eus que existem em um só e são guardados por signos que construímos e são construídos por si só em nossa vida, aos quais precisamos estar atentos para nos conhecer de fato. Ou seja: a verdade depende da linguagem, de mim para o outro, e de mim para mim mesmo nas revelações de nossa essência. A verdade, portanto, é uma coisa sempre: o reconhecimento de algo que já existia. Ninguém inventa a verdade, porque o urdir dela já seria falseá-la. Toda verdade sempre existiu antes e teve de ser desocultada, escavada, procurada em nós, e a função dos símbolos supratemporais, que permitem a nós nos compararmos no tempo é que irão nos proporcionar esse acesso à verdade. O porquê de a linguagem existir é para dar forma a essa verdade e podermos reconhecê-la e com ela crescermos enquanto humanos inseridos e construídos, não só consumidos, no tempo.

Uma vez de frente com esses extratos supratemporais de nós mesmos, descobrimos o que precisa ser desocultado tanto pelo olhar legítimo quanto pela poeira que ali obliterava a visão que podíamos ter de nós mesmos. E é a partir daí, com essa arma inabalável e invencível — a linguagem — é que seremos capazes de varrer de nossa vida toda a ocultação; sabendo quem somos, estamos fortes para traçar o itinerário e viver.

Só há verdade em nossa mente, que absorve e guarda as essências que revelamos sobre nós através da memória. Só há verdade nas sentenças que damos ao que de nós é essência. Só há verdade porque, diante de si mesmo, tudo importa menos, pois nada é mais forte do que a travessia intensa, íntima, perpétua de nosso coração.

Os olhos de dentro param os relógios de fora, e a alma, encontrada nos signos supratemporais que criamos, alça-nos acima do relógio de dentro, pois quando nosso tempo finar, permaneceremos como memória a quem ficar. É preciso não olhar o relógio no pulso, mas encará-lo como algo a ser vencido na luta da essência para se fazer percebida.

Pare o relógio. O tempo que constrói e hiper significante, é aquilo a que chamamos de humano, com o que fazemos agora, com os rastros que deixamos; são as únicas coisas que podem ser chamadas de verdade. Retratem-se. Deponha-se em códigos que só você sabe decifrar. Escreva-se. Marque seu nome nas árvores. Memorize os aromas e perfumes. Nas metáforas do tempo você se verá e dirá: no fundo, eu só preciso de mim, até mesmo para amar os que ocupam meu peito cheio de sensações. Sou apenas eu. A partir daí, o que pensam e sentem a meu respeito, é puro véu, ocultação e poeira; você não mais se importará, ocupado que estará com as suas verdades do supratempo, do tempo acima de nós.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.