O suspense brutal e elegante de Daniel Craig que você precisa assistir, na Netflix Divulgação / Sony Pictures

O suspense brutal e elegante de Daniel Craig que você precisa assistir, na Netflix

O submundo do crime exige certa medida maior de arrojo, muito mais que nas atividades protegidas por leis e estatutos, ou seja, sobressair é difícil e se manter vivo — metafórica e literalmente — é só para os que têm sangue de predador correndo nas veias. Muito mais que em qualquer outro ramo, aquele que aspira ao sucesso em atividades extralegais precisa deixar que venha à tona um lado cinzento, reprimido na personalidade de quem trabalha honestamente. Por óbvio, na vida — e nos negócios — nem sempre tudo é tão cartesiano assim e tem gente que simplesmente não consegue ser tão civilizado ao gerir sua própria carreira ou comandar a de seus subordinados; por outro lado, contrariando todas as previsões e o estabelecido, um traficante cauteloso, paciente e de ambições comezinhas escala uma montanha titânica de riscos, contorna os rivais, os concretos e os apenas imaginados, e chega ao topo (ou o lugar que elegeu como o topo) razoavelmente limpo, esperando poder gozar do descanso que julga merecer, até que, talvez como ultimato, recebe a missão que pode fazer o planejamento de toda uma vida escorrer por entre os dedos.

Matthew Vaughn tece os conflitos com que esse funcionário padrão da máfia terá de se ver até que consiga livrar-se da vida de crimes e de suas armadilhas, à espreita na primeira curva, e seguir em frente, por um caminho que talvez seja o do oposto do que viera trilhando até então ou apenas uma variação do que se tornara. “Nem Tudo é o que Parece” (2004) depende resolutamente da performance de Daniel Craig para alcançar o nível de tensão almejado, e nisso o filme se sai muito bem. Mais um dos tipos obscuros, excluídos, insignificantes da engrenagem do crime retratados pelo cinema, da mesma forma que em produções a exemplo de “Drive” (2011), dirigido por Nicolas Winding Refn, ou “Wheelman” (2017), levado à tela por Jeremy Rush, o personagem de Craig não tem nome — nos créditos finais, ganha a representação de XXXX, o que poderia significar que teria conseguido passar incólume pela bateria de inveja, descaso e violência do crime organizado de Londres, uma chaga da pós-modernidade como em qualquer megalópole do mundo, mas com um pouco mais de classe. Aqui, bandidos envergam ternos bem cortados, até os mais pedestres na hierarquia infindável do tráfico, e, claro que com o protagonista, vivido justo por um dos galãs de ascensão mais vertiginosa da história da indústria cinematográfica, não seria de outro modo. Craig, pouco antes de brilhar como James Bond nos longas da franquia “007”, papel que interpretou entre 2006 e 2021, dá uma mostra breve do que viria a ser seu desempenho como o espião mais falado do planeta. No que diz respeito a XXXX, narrador da história, depreende-se do roteiro de J.J. Connolly — uma extensão de “Layer Cake” (2000), seu romance policial, sem versão em português — que seu ingresso nesse meio acontecera não sem alguma resistência, como uma derradeira tentativa de ter alguma independência, e cuja saída é uma decisão exclusivamente sua. Connolly faz questão de deixar claro que essa visão romântica do que é o expediente de uma quadrilha fica bem para Bond, não para um XXXX qualquer, e o personagem de Craig, muito mais um anti-herói que propriamente um vilão, sente que o passado resolveu cobrar a fatura por suas escolhas, conscientes ou nem tanto. Jimmy Price, o chefão vivido por Kenneth Cranham, o encarrega de resgatar a filha de seu superior, Eddie Temple, o mandachuva de todo o esquema interpretado por Michael Gambon.

No meio do enredo, Vaughn inclui duas subtramas que comprometem o andamento de seu filme em alguma proporção, mas se prestam a um bom recurso para o que se assiste no desfecho. Uma das ramificações mais lucrativas do bando de Temple são as que envolvem o ecstasy, não por acaso também as mais arriscadas. Duke, de Jamie Forman, um dos homens de Jimmy, roubou da máfia sérvia um milhão de libras em pílulas da droga, e está prestes a se desencadear um verdadeiro banho de sangue, que, mais uma vez, só poderia ser remediado por XXXX, diplomático o bastante para reaver a mercadoria sem encerrar o canal com os traficantes do Leste Europeu. Ele quase consegue, mas apaixonado, quiçá pela primeira vez, só tem olhos para Tammy, de Sienna Miller, o respiro romântico-sexual que não pode faltar em narrativas desse gênero.

Vaughn trabalha com eficácia o conceito do homem eminentemente perdido que encontra no amor a chance de se emendar, mas que é também sabotado pelo destino, como faz acreditar na última cena, a grande guinada da história, quando um jovem aspirante a gângster — como ele mesmo o fora um dia — sela seu destino. Uma vez que se no crime, não se sai mais, eis o recado de “Nem Tudo é o que Parece”, que se assemelha a um thriller sem coração, mas bem à Scorsese, é a história de um amor que se esqueceu de acontecer.


Filme: Nem Tudo é o que Parece
Direção: Matthew Vaughn
Ano: 2004
Gêneros: Policial/Drama/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.