Corpos que desaparecem

Corpos que desaparecem

O mês de junho de 2022 está marcado pelo retorno de um fantasma tipicamente latino-americano. Nas figuras de um indigenista brasileiro e de um jornalista inglês, ressurgem os “corpos desaparecidos” — desta vez, no fundo de uma mata escura. Faz um tempo que ocultar cadáveres virou especialidade de chilenos, argentinos, uruguaios e brasileiros. Não se trata de um desvio histórico, mas sim de tecnologia ou forma de gestão social para garantir uma certa ideia de ordem nas coisas.  

Pilar Calveiro descreveu bem a máquina de desaparecimentos na Argentina (também na América Latina) dos anos 1970. Segundo ela, havia os “desaparecedores de cadáveres”: eles fuzilavam prisioneiros que eram enterrados, cremados ou “deixados em lugares públicos para simular algum tipo de confronto”. Para os presos não resistirem, os homens do governo aplicavam soníferos nos presos que, no último lance, poderiam ser jogados ao mar por meio dos conhecidos voos da morte de helicópteros.

A prática de desaparecer com o cadáver embute a lógica de que não se pode provar um homicídio sem existência do corpo da vítima. Esconde-se, assim, o crime com o uso da técnica forense e da burocracia. Por outro lado, o desaparecimento nega um dos maiores ritos civilizatórios criados pelo homem: o funeral, o enterro ou a cremação de seus mortos. (A escolha sobre o destino do corpo morto é o ponto essencial de um filme como “Capitão Fantástico” (2016), de Matt Ross, disponível na Netflix.)

Dois romances brasileiros exploraram nos últimos anos a questão do desaparecimento. O primeiro é o livro “K – Relato de uma Busca” (2011), de Bernardo Kucinski, que faz uma mistura de memórias, ficção e reflexão política. Uma escrita dura, truncada e incômoda que só poderia nascer da mão de um não-ficcionista. O segundo é “O Corpo Interminável” (2019), de Claudia Lage, que cria a história de um filho no trabalho de reconstruir a trajetória da mãe desaparecida nos anos de chumbo do Brasil.

A impossibilidade de enterrar um morto remete ao conflito do indivíduo contra o Estado. Trata-se de uma das formas mais enraizadas de controle de populações ou de gestão de vida social. A máquina estatal é uma estrutura que regula uma pessoa desde o nascimento (o documento da certidão) até sua morte (o atestado de óbito). Se alguém desaparece, não pode ocorrer a morte jurídica. Algo como as cartas, boletos, propagandas e cartões de crédito que ainda chegam à casa da personagem desaparecida de Kucinski.

Em 1936, às vésperas do desastre da Segunda Guerra Mundial, a pensadora Simone Weil imaginou (1909-1943) o projeto de leituras de tragédias gregas para torná-las “acessíveis às massas populares”. A lista começaria pela peça “Antígona”, de Sófocles, justamente a história da mulher que desafia o poder da cidade de Tebas para enterrar o corpo do irmão morto. Ela escolheu o tema do cadáver insepulto que seria central para o entendimento da lógica dos campos de concentração. 

“O corpo [do irmão de Antígona] ficará largado no chão, entregue aos animais e aos corvos. É preciso saber que no espírito dos gregos não havia desgraça pior nem humilhação pior do que ser tratado assim depois da morte. O rei anuncia a sai decisão aos cidadãos e lhes diz que se alguém enterrar o cadáver maldito será castigado com a morte”, diz Simone Weil, antevendo a degradação nos campos de concentração produzida pelos civilizados alemães.

Ao rei na cidade grega, cabia o poder de definir quem era ou não maldito, quem poderia ou não ser enterrado de forma digna. Também estava a cargo dele o uso da “força”, o instrumento de controle populacional e de produção de tragédias humanas. Em seu projeto de ler os gregos, Weil se deteve ainda na questão da “força” na “Ilíada”, de Homero. De lá, extraiu a ideia de homens transformados em coisas (algo central para o século 20, seja nos totalitarismos, seja nos regimes ditos democráticos).

“A força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja submetido em uma coisa. Quando ela se exerce até o fim, transforma o homem em coisa, no sentido mais literal da palavra, porque o transforma em cadáver. Era uma vez alguém e, um instante depois, não há mais ninguém. É um quadro que a Ilíada não se cansa de nos apresentar”, define Weil, que acrescenta: “Um homem desarmado e nu contra o qual se dirige uma arma torna-se cadáver antes de ser atingido definitivamente”.