O que as palavras criam

O que as palavras criam

Aquele estranho que falava em cima da rocha, inconho, de dedos duplos, à hora do crepúsculo. No cocho refocilava o porco. Os cães ladravam por ali à solta. Língua que se bifurca, movia-se o ser rastejante e sinuoso; o dorso liso e luzidio, em meio aos matizes dourados, grises e sanguiferruginosos das folhas de outono. Como um gatuno, o vento ia do sussurro ao murmúrio, até que, repentino, uivava e gania, feito lobo. O que nos adocica ou azeda é o que nos sai da mente e do coração e vem pela boca. Da fala à premeditação ou intempestividade dos gestos, e destes à consumação dos atos. O beijo ou o homicídio, por exemplo.

O que nos afaga ou espanca depende da mão que se levanta. O que nos pisa e esmaga vem com o pé em forma de pedra. Assim falava o estranho coxo, como quem pisa em falso num sopro de flauta. Como se viesse com um corte de caco de vidro em pé descalço. Com um roufenho som gutural, as palavras sangravam em seus lábios. Assim falava o manco e rouco, que alguns tachavam de louco. E aquela roupa rota e longa que usava, era uma capa de seda negra ou eram mesmo asas de morcego? Seria um anjo caído? Um demônio?

Eis que então demudava o tom e o teor de sua fala. Todas as manhãs escovo meu sorriso de rosnar para o mundo. O sórdido mundo que abomino e me aborrece, porque meu reino é deste mundo a que pertenço. Assim falava, meio torto, como se sofresse de um torcicolo. Talvez por conta de só olhar o mundo de soslaio. O mundo visto pelo canto da vista, ou canto do olho, que é onde se diz que fica o rabo do olhar. Falava por enigmas. Olho como quem não olha no olho da Lua Negra. Os negros, íncubos olhos de Lilith. O mito arcaico. Aquele que na cópula queria Adão na condição de súcubo, e ele a isso não sucumbiu.

Olha-se ela nos olhos dele,
cegos para os olhos dela,
não se perder ali na escuridão.

Críptico, falava de cemitérios. Espirrava ao pó das catacumbas. O mundo de flagelos é um espelho estilhaçado. Sou o espírito dos fragmentos num caco de vidro espelhado. Um reflexo das distorções do mundo, como as aberrações num palácio de espelhos deformantes. Dizia ele, exibindo cicatrizes. Sou o fígado opilado deste mundo maligno, que não levo a sério. A humanidade não me ilude. Se há males que vêm para bem, há o mal do bem também. Tempo demasiado já o homem teve para ser melhor, mas ele não quer, e não quer porque não quer, a demonstrar que não e não, tanto é que ele realmente não quer, definitivo. Infinita ignorância.

Inciso animal incisivo,
desde o dente ciso.
Muito riso, pouco siso.

Assim falava, e cuspia com raiva. O verbo com as tintas do desmantelo do mundo. E ali o negro humor, o corrosivo sarcasmo, o verbo laminado da fúria, a ferina ironia da língua envenenada. Por conta da queda e do desencanto. O canto cáustico, cítrico, iconoclasta. Ocasionalmente cínico, consoante a circunstância de dar-se o devido troco. O avesso do lado oposto, em que se pautava por extrovertido e pândego. Aquele que o conhecia, certamente sabia, ou então deixava de saber, por indiferença ou desinteresse.

Censuravam-lhe o humor de corrosão, a inserção do riso em tudo, quando o que diziam ser piada era só uma forma de piar. Assim falava aquele que chorava sorrindo. Vizinha, a morte lhe fazia visitas, e os dois ali se embebedavam com vinho rascante e davam roufenhas e boas gargalhadas, rindo de tudo, mesmo que nem tudo fosse de todo risível. Por empréstimo de Herman Hesse, tudo é um jogo de contas de vidro, um faz-de-conta de tudo, num jogo de sábios. Dizia. As pessoas gostam de jogar, e delas há que jogam mal, por isso perdem, e se perdem de si mesmas.

Censuravam-no pelos excessos de seu caráter mordaz, meio que levando tudo a fio de ironia, na base da pilhéria. Ele estava um pouco à frente. Não entendiam a verve do verbo que o exacerbava. As páginas que ele escrevia. Seriedade? Não levem a literatura demasiadamente a sério, mas apenas o suficiente para sustentá-la. A literatura é também uma forma de brinquedo. É tudo um jogo. Descarto minhas cartas. E tanto se me faz como tanto se me fez.

E mais ele dizia. A grande certeza da vida é uma só, sejamos ou não fatalistas. Outra certeza é que caixão não tem gavetas, é só uma caixa de ossos, em face do que não importa seriedade muita. A morte é o passaporte da vida para não se sabe se ou que itinerário.

Assim falava aquele que, ao falar do homem, de outro não falava senão de si mesmo. O vento apague seus rastros. O tempo apague seu nome. Terá sido ele, então, apenas uma ilusão dos senhores. Lembranças às vossas digníssimas consortes. Porque elas, sim, jamais o esquecerão. Porque ninguém esquece aquele que nunca existiu, mesmo porque o que não existe não é lembrado, o que não se mostra não é visto, todavia podendo que se esqueça daquele que realmente existe, ou que tenha de fato existido.

Bem-aventuradas aquelas que, com as pétalas dos lábios e seus belos vestidos, passam pelo não-existido como quem passa passeando pela vida. Benditas criaturas. São as bagas de uva da Terra. Em cima da rocha, no mundo encantado do não-existente, ele as observa com ternura. A escolhida, aquela que sentiu nos cabelos o toque de dedos como um sopro de brisa, leva do campo a florzinha invisível que ele colheu e nela colocou.