Henri Rochat, a história do amante de Proust que morou e morreu no Brasil

Henri Rochat, a história do amante de Proust que morou e morreu no Brasil

“Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust (1871-1922), talvez seja a principal catedral literária da França. O escritor criou uma civilização, quiçá uma história paralela — ao estilo de Balzac —, que tem merecido estudos detidos de críticos literários, filósofos (Gilles Deleuze, por exemplo) e outros pesquisadores. Cem anos depois de publicado, o romance-romances continua reverberando, a cada nova análise dizendo e sugerindo mais coisas. Como obra-bíblica, é inesgotável. Sobre a vida do autor, que daria um romance — as biografias, a rigor, são romances do real (e o real contém partes da irrealidade cotidiana) —, há sempre notícias novas surgindo ou sendo recontadas. Como a história de Henri Rochat, o suíço que foi seu amante e morou no Brasil.

O Jornal Opção fez um levantamento de biografias de Proust publicadas no Brasil e todas mencionam Rochat, mas nenhuma diz que morou no Brasil. O fato é que se sabe pouco sobre o garçom do Ritz que pretendia se tornar pintor, mas que ficará no rodapé da história como “amante” do escritor.

O “Estadão” publicou a reportagem “Livro revela as aventuras de Proust com um amante que acabou no Brasil”, assinada por Hugues Honoré, da AFP.

Proust conheceu Rochat em 1917, no hotel Ritz, onde o garçom o servia. Não se sabe sequer quando o suíço, de bela estampa, nasceu.

Lettres à Horace Finaly (Gallimard, 132 páginas)

Em 1918, Proust convidou o jovem para morar em seu apartamento. Ao banqueiro Horace Finaly, seu amigo, o escritor informou por carta que ele residiria na sua casa “apenas algumas semanas” (curiosamente, morou dois anos com o autor de “Sodoma e Gomorra”) e que trabalharia como seu “secretário”.

As cartas que saíram no livro “Lettres à Horace Finaly” (“Cartas a Horace Finaly”) revelam que, apesar da empolgação inicial, derivadas possivelmente da juventude e da beleza de Rochat, Proust se arrependeu do convite. “Por estar entediado em casa, ele ‘fugiu’ duas ou três vezes e infelizmente não só perdeu peso, mas também todo o dinheiro que dei a ele”, conta o escritor ao banqueiro.

Rochat apreciava torrar o dinheiro “farto” de Proust, inclusive no alfaiate. “Ele gastou muito mais do que Proust. Foi um dândi que só lhe deu alguma inspiração, alguns jogos de dama e noites ao piano”, afirma Thierry Laget, o organizador-editor das 20 cartas que foram publicadas, na semana passada, pela Editora Gallimard.

Hugues Honoré relata que Proust manteve “uma longa e apaixonada relação com Reynaldo Hahn, o compositor venezuelano que era uma celebridade da Belle Époque parisiense”. Rochat também tocava piano, mas sem o talento do latino-americano.

Sob pressão de Proust, que queria se ver livre do amante, Horace Finaly operou “para mandar” Rochat para o Brasil.

Horace Finaly conseguiu um emprego para Rochat “em uma delegação do Sudaméris, a agência do Banco BNP para a América Latina, em Recife, Pernambuco”.

Como Rochat era um gastador nato, Proust repassou dinheiro para o capitão do transatlântico, com a recomendação de que só o repassasse para o jovem depois que o navio zarpasse.

Genealogistas suíços estão tentando definir os “traços” de Rochat. Porém, “até o momento, ele não foi identificado. Também não temos seu retrato”, diz Thierry Laget.

“No Recife”, anota Hugues Honoré, “Rochat voltou a levar uma vida de luxo. Acumulou dívidas e depois disse que ‘um tal’ Proust iria pagá-las um dia. O escritor certamente lhe enviou dinheiro”. No artigo “Como o Brasil do início do século 20 se leu em Proust”, publicado em “O Globo, em julho de 2021, Etienne Sauthier conta que “o secretário teria morado em Recife, onde levou uma vida dispendiosa, gastando mesadas enviadas por uma ‘tia’ francesa. Mas a ‘tia’ — ‘tante’, em francês — seria, na realidade, uma gíria para homossexual, portanto uma referência a Proust”.

Horace Finaly: banqueiro que era amigo de Proust | Foto: W. Commons

Doutor em História pela Universidade Paris 3, Sauthier escreve que “Rochat teria partido de Recife sem pagar a pousada onde morava. Deixou sua mala como caução da dívida. Dentro dela, estavam fotos de Proust e vários volumes de ‘Em Busca do Tempo Pedido’, com dedicatórias do autor. Esses livros foram levados por um funcionário da Latécoère, os antigos correios aéreos franceses, ao médico da base da empresa em Maceió, o romancista e poeta Jorge de Lima”. Em 1925, Lima publicou o poema “o mundo do menino impossível”, cujo “contexto é repleto de alusões a ‘No Caminho de Swann’. Em 1929, Lima também foi o primeiro brasileiro a escrever um trabalho de pesquisa sobre o autor francês”.

Não se sabe exatamente onde Rochat morreu. Acreditava-se que teria sido na Argentina. “Mas descobriu-se recentemente que ele vivia nos arredores de Parnaíba, quando desapareceu em 1923”, assinala Hugues Honoré. Não há sepultura com seu nome. “Mas sabe-se que levou consigo para aquela região tropical exemplares autografados dos romances de Proust.”

Thierry Laget diz que “Rochat ajudou muito a divulgar o trabalho de Proust no Brasil, um dos países onde ele é conhecido e apreciado há muito tempo. Sabemos que no Brasil ele mostrou fotos dele com Proust, então essas fotos podem reaparecer um dia”.

A seguir, confira a pesquisa do Jornal Opção a respeito de como alguns autores trataram a relação de Proust e Rochat.

Henri Rochat na versão de George Painter

“Marcel Proust” (Guanabara, 797 páginas, tradução de Fernando Py), do britânico George D. Painter, é uma das melhores biografias. Henri Rochat é citado em seis páginas.

Numa carta a Walter Berry, Proust comenta sobre “um amor infeliz que está acabando”. Em maio de 1918, ao convidar o venezuelano Reynaldo Hahn e Jean Louis Vaudoyer para jantar em seu quarto, fala de “um jovem que está morando em minha casa há vários meses e que não nos incomodará porque não fala nunca”.

Painter assinala que “o jovem tão pouco loquaz era Henri Rochat, um suíço empregado do Ritz, que Proust contratara como secretário, e, sem dúvida, vez por outra ditava cartas a Rochat, que escrevia com boa letra, mas cuja ortografia era deficiente”.

Reynaldo Hahn, venezuelano: uma das paixões de Marcel Proust I Foto: W. Commons

De acordo com Painter, “Proust percebeu em seu novo prisioneiro ‘um dom surpreendente para a pintura’. Levou-o para ver a pequena natureza morta com duas maçãs, pintada por Fantin-Latour, que ficava na sala de jantar de Jacques-Émile Blanche, em Auteuil. Porém Blanche ainda não voltara para casa. Um dos poucos traços de Rochat que se percebe na Albertine prisioneira e pode ser distinguido do de Agostinelli é o seu talento para a pintura, ‘uma tocante distração da cativa’, diz o narrador, ‘que me emocionou tanto que a cumprimentei’. Mas a impressão de Proust de que aquele ‘amor infeliz’ estava acabando era apenas um alarma falso, pois o cativeiro de Rochat iria durar mais dois anos”.

Rochat, além de amante, era companheiro de Proust no jogo de damas.

Certa feita, Proust tossia e ditava para Rochat. “E foi interrompido pelo pobre Rochat, que perguntou: ‘Como se escreve ‘tosse’?”

Em 1920, Rochat havia rompido o noivado com a filha de um porteiro. Painter escreve que “parecia melhor para todos que ele deixasse o país. A última aparição semipública de Henri foi em março de 1921, quando Mauriac jantou à cabeceira de Proust, e teve uma desconfortável consciência, na sinistra escuridão do quarto, da presença do ambíguo cativo”.

Proust decidira encontrar um emprego para o amante e, para tanto, “escreveu a Robert de Rothschild, a Henri Gans e a Horace Finaly, companheiro dos tempos de estudante, agora diretor do Banco de Paris e da Holanda”.

Na carta, Proust alerta: “Tenho de confessar que este rapaz é um tanto preguiçoso e não tem muito boa cabeça para números”. Mesmo assim, “Finaly encontrou um emprego para Rochat na sucursal norte-americana do Banco de Paris e da Holanda, e Henri partira para o exílio no dia 4 de junho”. Curiosamente, o sempre cuidadoso e bem-informado Painter não menciona, em nenhum momento, a mudança de Rochat para o Brasil.

Painter assinala que, “ajudado pela estranha coincidência de que a noiva abandonada de Henri fosse filha de um porteiro, Proust pôde inserir na futura ‘La Prissonnière’ o triste episódio da traição de Morel à sobrinha do alfaiate. Outros detalhes, como o terrível grito de Morel — grand pied de grue! —, talvez pertençam ao caso amoroso de Henri. Assim, havia em Henri Rochat não só traços de Albertine mas também de Charlie Morel”.

Henri Rochat na versão de Céleste Albaret

O livro “Senhor Proust” (Novo Século, 444 páginas, tradução de Cordelia Magalhães), de Céleste Albaret, menciona Henri Rochat em três páginas.

Céleste Albaret foi governanta e confidente de Proust durante oito anos, no período em que ele escreveu “Em Busca do Tempo Perdido”.

Chave para se entender a personagem Françoise, Céleste Albaret relata: “Somente conheci um secretário na casa, cujo nome era Henri Rochat. Ele [Proust] o encontrara no Ritz, onde fazia parte do pessoal subordinado ao diretor do restaurante, Olivier Dabescat, eu creio; e — tudo por causa da sua gentileza e bondade — ele o havia acolhido, em grande parte por caridade, porque ficara tocado pelas ambições do jovem”.

Céleste Albaret, a governanta de Proust

A governanta conta que Rochat “era um jovem suíço, bastante mal-humorado e silencioso, com um ar superior que os suíços têm muito. Ele sonhava em ser artista e pintor. Se ele desempenhou o papel que quiseram lhe atribuir, então sr. Proust o escondeu muito bem de mim — como? Eu me pergunto. Sr. Proust vivia num canto, Rochat no outro”. Céleste Albaret diz que, na residência da Rue Hamelin, ela via (e sabia) tudo. Portanto, seu objetivo é diminuir a “importância” de Rochat na vida do escritor.

No livro de Painter, Proust não menospreza Rochat como pintor. Mas Célestre Albaret apresenta outra versão: “Rochat só tinha uma coisa a seu favor: uma bela letra [o que é confirmado por Painter]. Para o resto: — Ele acredita que pinta — dizia o sr. Proust”. Porém, assinala a confidente, “mesmo com a bela letra, sr. Proust se cansou rápido” (vale lembrar que Painter fala em dois anos de relacionamento).

Proust dizia a Céleste Albaret: “No meu trabalho, ele [Rochat] me cansa mais do que me ajuda”.

“A caridade se transformou em piedade. Ele o manteve um pouco mais de dois anos, dividido entre o desejo de se separar e o de não jogá-lo na rua. Finalmente, sr. Proust manobrou através do seu amigo de infância, o banqueiro Horace Finaly, e conseguiu que Rochat se fosse para longe — o que era um desejo do jovem —, mas com a segurança de uma posição garantida. Ele assumiu uma posição em um banco em Buenos Aires, e não em Nova York, como contou falsamente. Era numa sucursal do Banque de Paris et des Pays-Bas. Rochat estava mais ou menos noivo com uma jovem que morava na Rue des Acacias, que vinha vê-lo em seu quarto, na Rue Hamelin. Para partir, ele a deixou; e o sr. Proust foi consolá-la depois de sua partida. Quanto ao próprio Rochat, ele jamais mostrou arrependimento. Seu único comentário foi: ‘Enfim, Céleste, cá estamos nós, bem tranquilos”, diz a subordinada do escritor.

Henri Rochat nas versões de Sansom e de Citati

No livro “Proust” (Jorge Zahar Editor, 130 páginas, tradução de Isabel do Prado), William Sansom menciona o jovem suíço: “E agora, Henri Rochat, seu jovem secretário por alguns anos, o último dos cativos silenciosos, tinha de deixá-lo”.

O italiano Pietro Citati, no livro “Proust” (Companhia das Letras, 338 páginas, tradução de Rosa Freire D’Aguiar), assinala: “Em 1918, Proust confessou a Hauser, candidamente, ter gastado 30 mil francos para ‘um amor do povo e os respectivos auxílios filantrópicos’, ou seja, provavelmente para dar roupas luxuosíssimas e sabe-se lá que presentes a Henri Rochat, um camareiro do Ritz que vivia em sua casa, repetindo o destino de Agostinelli. Hauser se indignou: Proust golpeava pelas costas seu desesperado esforço para salvá-lo da miséria; na encarnação anterior, devia ter sido ‘um hidalgo espanhol, um tipo no gênero do duque de Osuna, o qual acreditava que, por ter considerável fortuna, tudo lhe era permitido’. Assim, quando os recursos estavam acabando, Hauser teve uma nova ideia: estabelecer uma renda vitalícia, que impediria Proust de dilapidar seu capital e lhe proporcionaria modesto conforto. Proust repudiou a proposta: detestava o modesto conforto burguês sugerido por Hauser, tinha a firme intenção de dilapidar o capital e morrer depressa”.

Henri Rochat na versão de Edmund White

No livro “Marcel Proust” (Objetiva, 158 páginas, tradução de Anna Olga de Barros Barreto), Edmund White afirma que, em 1918, não “se extinguira” em Proust “o desejo de amar ou de ao menos ter uma companhia masculina. Enamorou-se de um garçom do Ritz chamado Henri Rochat, um belo suíço que queria se pintor. Logo depois de conhecê-lo, Proust insistia em ser servido por Rochat sempre que jantava no Ritz. Depois passou a cumulá-lo de presentes, principalmente roupas caras. (…) Ao seu banqueiro exasperado, Proust confessou ter gasto cerca de 40 mil dólares com o jovem. Quando o banqueiro sugeriu que Proust salvasse o restante de sua fortuna (que ele tinha reduzido a aproximadamente 25% por meio de gastos inconsequentes e maus investimentos) aplicando-a de tal forma que ele não pudesse ter contato com o capital, Proust, altivo, respondeu que o amor é uma paixão cruel que torna a vida barata”.

Marcel Proust ao lado de sua mãe, Jeanne, e seu irmão Robert | Foto: Fonds Le Masle

Edmund White conta que, no apartamento de Proust, Rochat passava a maior parte do tempo pintando. “Em ‘A Prisioneira’, o Narrador diz que ‘as pinturas de Albertine, as distrações comoventes da prisioneira, me emocionaram tanto que eu a cumprimentei por elas’. O que os pesquisadores descobriram em anos recentes [o livro é de 1999] foi que Proust escreveu primeiro ‘A Fugitiva’, logo após a partida de Agostinelli, enquanto a matéria ainda incomodava sua mente e pesava em seu coração, ao passo que ‘A Prisioneira’ foi elaborado mais tarde, embora o livro na realidade precedesse ‘A Fugitiva’ na sequência em que foram publicados. Por quê? Simplesmente porque a principal inspiração para a Albertine de ‘A Prisioneira’ é Henri Rochat, e não Alfred Agostinelli. Era Rochat que morava em seu próprio quarto, solitário e autossuficiente, no apartamento sombrio de Proust, enquanto Agostinelli tinha morado com a esposa e apenas por muito pouco tempo com Proust. Assim, ‘A Fugitiva’, que já estava esboçado em 1916, dobrou de tamanho durante os dois anos em que Rochat viveu com Proust”.

“A posse daquilo que amamos é uma alegria ainda maior do que o próprio amor”, escreveu Proust em “A Prisioneira”.

Depois de algum tempo, Rochat deixou de entusiasmar Proust, “que procurou livrar-se dele. O escritor queixou-se a madame Straus que havia se metido num caso romântico ‘sem saída, sem alegria e que constantemente envolvia cansaço, sofrimento e despesas absurdas’”.

Rochat saiu do apartamento de Proust e voltou para a Suíça. Logo depois estava de volta a Paris e à residência do escritor. A um amigo, o autor de “Em Busca do Tempo Perdido” escreveu: “Ele me pediu uma hospitalidade que eu não pude recusar mas isso me envenena a existência”.

Em maio de 1921, de acordo com Edmund White, “Proust convenceu Rochat a partir para Buenos Aires, onde trabalharia num banco, embora ninguém jamais tenha conseguido encontrar vestígios dele na Argentina”. Porque, claro, o suíço estava no Nordeste do Brasil.

No final do livro, Edmund White assinala: “Proust talvez tenha atacado o amor, mas ele sabia muito sobre o assunto. Como nós, ele não tomava nada como certo. Ele não presumia, não usava termos cômodos para sua própria experiência. Lemos Proust porque ele sabe muito sobre os elos entre a angústia infantil e a paixão adulta. Lemos Proust porque, apesar da sua inteligência, ele despreza as avaliações racionais e sabe que somente o conhecimento retorcido que o sofrimento nos traz nos serve realmente. Lemos Proust porque sabemos que no estágio terminal da paixão não amamos mais o amado; o objeto do nosso amor foi encoberto pelo próprio amor”.