Passadas mais de quatro décadas de sua morte, o trono de Alfred Hitchcock (1899-1980) continua da mesma forma que ele o deixou — e tudo indica que seguirá assim por muito tempo, quiçá pela eternidade afora. Por óbvio, muita gente tentou se igualar ao Mestre do Suspense (muitos até chegaram bem perto), mas o que se verifica ao se arriscar um balanço do que surgiu depois com a produção do britânico é que só mesmo Hitchcock tem o timing exato quanto a não deixar que uma narrativa caracterizada pelo incerto, pelo sugerido incorpore a perversidade do que se aprecia em cena e transforme-se ela própria num instrumento de tortura para o público, uma pletora de situações de que se pode esperar tudo, quando o mais razoável e natural seria ouvir o que a história mesma está a dizer e dar-lhe um fecho. Enquanto uma maioria se perde na enxurrada verborrágica dos diálogos típicos dessas tramas, Hitchcock e mais alguns poucos dão aos diálogos a importância que eles merecem. Palavra alguma é disposta a esmo, todas têm uma função e nenhuma ideia é desperdiçada.
Pode até não parecer, mas Kike Maíllo pertence a essa nobre categoria. Encontrar a consonância em trabalhos a exemplo de “Inimiga Perfeita” (2020), que, como todo suspense que se preze, deve devotar um espaço significativo ao que é falado, atentando também para o aspecto complementar, o da ação propriamente. O espanhol sabe exatamente o desastre que pode ser esticar a corda além do que ela poderia suportar, tanto que em muitas passagens de longa é nítido seu esforço quanto a permitir que o enredo decida para onde quer se encaminhar, como uma criança endiabrada, e resolva-se por si só. O resultado é uma trama desafetadamente misteriosa, de cujos desdobramentos se espera o elementar e o nem tão elementar assim, em que torna-se mais e mais evidente o cuidado de, mais uma vez, não sobrecarregar o que se vê com excessos visuais, tampouco de detalhes cuja verbalização é o único meio realmente eficaz para a absorção do que se deseja comunicar. Neste ponto, Maíllo pode-se considerar um discípulo de Hitchcock, dotado de todas as ferramentas sem as quais é impossível levar boas histórias a termo.
Aqui, o elemento de fantasia é uma constante. Depois de um prólogo um tanto arrastado, o arquiteto Jeremiasz Angust vivido por Tomasz Kot quer voltar a casa, mas um congestionamento ameaça detê-lo em Paris, onde ministrara uma palestra. A fotografia de Rita Noriega destaca a lugubridade de tudo quanto se vai ver ao longo de “Inimiga Perfeita”, valendo-se das sequências iniciais para situar a audiência nesse cenário de pouca convergência, que descamba para a atmosfera de paranoia e caos que o diretor busca. Do meio daquele cinza todo, surge a figura de Texel Textor, encarnação do farelório de que se falava acima. Num óbvio jogo metalinguístico, o roteiro de Maíllo, Cristina Clemente e Fernando Navarro se utiliza do nome da personagem, brilhantemente desenvolvida por Athena Strates, para fazer menção a essas conversas sem nexo e sem futuro, inofensivas ao primeiro olhar, mas que tem o condão de perder uma pessoa, como se vai passar com Angust. Encharcada por uma chuva torrencial, Textor pede uma carona no táxi ocupado pelo personagem de Kot, alegando que está atrasada e não arruma condução. Visivelmente constrangido, ao mesmo tempo em que pondera, avalia o desespero da mulher, em situação parecida a sua, Angust aquiesce, dando início a seu próprio martírio. Emendando um assunto no outro, como se submetê-lo a uma espécie de teste, Textor mostra-se um carrasco implacável a açoitá-lo com uma língua mais danosa que um flagelo, até que vem à superfície o grande mistério que os une, assim como a Isabel, a esposa de Angust, interpretada por Marta Nieto, num jogo muito bem urdido de verdades e mentiras. O único propósito de Kike Maíllo desde o princípio.
Filme: Inimiga Perfeita
Direção: Kike Maíllo
Ano: 2020
Gênero: Suspense
Nota: 8/10