Produções que tecem loas à bravura — ainda que colocada em prática de um jeito meio torto — de personagens masculinos jovens e, tomados de um espírito de liberdade, revolucionário, justiceiro, passam a se deixar imbuir dessa necessidade de fazer o bem a qualquer custo são um capítulo à parte na história do cinema. Quase sempre, esses personagens não acabam tão bem quanto o público gostaria, mas também há ocasiões em que julgamentos de valor e arremedos de lições de moral ficam para os filmes dito sérios e esses intrépidos cavaleiros do apocalipse nosso de cada dia vencem, não sem boa dose de autossacrifício, passando por cima de dificuldades quiçá inexpugnáveis ao resto dos comuns mortais, o que fala ao espectador de forma a avivar nele fumos de alguma esperança, como se tivéssemos todos nosso bocado super-herói. Deuses — ou semideuses — de um Olimpo pouco mais tangível, esses guardiães da virilidade avançam por sobre tempo, mantendo aceso o fogo da mudança, a chama da transformação, que vai resistindo às tantas investidas da era contemporânea, que desdenha de certo arrojo.
“Centauro” (2022), do espanhol Daniel Calparsoro, aposta no entretenimento descomplicado para laçar de vez o interesse do espectador, conduzindo seu filme em ritmo acelerado, tudo com a ajuda de um elenco carismático e dinâmico, que personifica o movimento da trama. Calparsoro não tem passado despercebido do grande público, que expressa confiança em suas aventuras, a exemplo do que se atesta com “Até o Céu” (2020), que já é alvo da disputa de canais a cabo e promete transformar-se em série. “Centauro”, seu projeto mais recente, emula características que levaram “Até o Céu” a ser sucesso entre assinantes de plataformas de streaming e nas salas de cinema, mas tem seus próprios méritos. Releitura do longa francês “Asfalto de Sangue” (2017), de Yann Gozlan, adaptação do romance de Jérémie Guez, o filme de 2022 deslinda as ambições de um aspirante a piloto profissional de motociclismo e o que é capaz de fazer para chegar lá. Seus planos até têm boas chances de vingar de imediato, não fosse uma pedreira familiar no caminho, que o obriga a fazer um desvio com que não contava e que o deixa bastante vulnerável a situações que lhe fogem do controle. Até que a vida dá outra guinada.
Calparsoro é expedito quanto a transmitir o que considera fundamental à apreensão de seu argumento, elaborado no roteiro de Gaël Nouaille e Gemma Ventura e muito bem ancorado por Àlex Monner. Rafa, o protagonista vivido por Monner, é esse sonhador, que visa a levar a vida que julga merecer com a ajuda de sua moto. O conflito que o impede não tem de excepcionalmente denso do ponto de vista dramatúrgico, mas é crível e sua performance até lhe dá ares de algo épico: a ex-namorada, Natalia, de Begoña Vargas, também num bom momento, guardava drogas no apartamento em que morava com o filho dos dois a fim de ganhar algum dinheiro, uma vez que nunca recebera ajuda para criar o menino. Rafa intervém junto à quadrilha de Carlos, de Édgar Vittorino, a fim de conseguir tempo para pagar os duzentos mil euros que Natalia passara a dever aos traficantes. Ele consegue negociar a dívida, mas, claro, vai ter de ir muito mais longe do que supunha para livrar Natalia da perseguição dos capangas de Carlos, liderados por Boro, interpretado por Carlos Bardem: vai ter de colocar sua perícia sobre duas rodas a serviço do crime, por dois meses, até que o montante esteja quite. Como se vai ver, os bandidos estendem esse prazo unilateralmente, o que leva Rafa a transpor os últimos limites que o separavam da gangue.
O possível ingresso do piloto na escuderia da personagem de Patricia Vico, mulher do diretor, entra como mero pano de fundo, como chamariz para atrair plateias genéricas. O que importa de fato aqui é o enfrentamento do protagonista consigo mesmo, e de que maneira vai contornar o desafio de servir à quadrilha, não renunciar ao sonho e preparar um plano de fuga da armadilha em que lhe quer encerrar o destino, que, na sequência final, lhe sorri de algum modo. Ainda que o jogo para ele tenha virado por completo.
Filme: Centauro
Direção: Daniel Calparsoro
Ano: 2022
Gênero: Ação/Thriller
Nota: 8/10