Filme com Viggo Mortensen, na Netflix, vai te fazer  rir, chorar e acalmar seu espírito Divulgação / Bleecker Street

Filme com Viggo Mortensen, na Netflix, vai te fazer rir, chorar e acalmar seu espírito

A vida seria uma beleza sem o apelo incansável dos meios de comunicação de massa, berrando nos ouvidos das crianças que sem o brinquedo X elas estarão condenadas ao degredo pelos coleguinhas na hora do recreio, ou que têm comer tal ou qual biscoito ou chocolate ou iogurte ou qualquer outra porcaria se quiserem ser alguém na vida; a vida seria uma beleza se essas mesmas crianças pudessem estar sempre, todo o tempo, 24 horas por dia, sete dias por semana, cercadas de gente que pensasse apenas o que convém, nunca dissesse palavrão e fizesse rigorosamente o que o papai e a mamãe dissessem, sem jamais retrucar, nem em sonho; a vida seria uma beleza se todas as crianças do mundo orbitassem apenas em torno daquelas pessoas que as amam incondicionalmente, não sendo nunca preciso ou recomendável ou fundamental temer influências estranhas e mal-intencionadas. O universo inteiro seria um mar de bênçãos, alimentado por cidadãos conscientes de seus direitos e obrigações, cada qual sabendo exatamente o seu lugar no mundo. Prisões tornar-se-iam obsoletas, uma vez que, sob essas condições, ninguém nunca mais imaginaria cometer algum excesso. Será mesmo?

A família que protagoniza “Capitão Fantástico”, roteirizado e dirigido por Matt Ross, houve por bem retirar-se da civilização para um terreno de floresta no noroeste dos Estados Unidos. Comem o que conseguem caçar, bebem da água que armazenam de uma fonte próxima, respiram um ar fresco o bastante para intoxicar quem nasceu e cresceu em meio ao caos das megalópoles. Não têm acesso a shoppings, celular, comida congelada. Estão a salvo da paranoia consumista que escraviza a humanidade desde o estabelecimento formal do capitalismo, há seiscentos anos. Um cenário tão eminentemente utópico só funciona se gestado por alguém que encarne o papel de salvador do mundo, e Ben toma para si essa responsabilidade. Seus cinco filhos compõem um exército em que só ele manda. Não há desperdício de nada, muito menos de tempo e quando não estão entretidos com uma boa leitura — enquanto uma das filhas se debruça sobre “Armas, Germes e Aço”, tentando entender que rumo o historiador Jared Diamond prevê para a humanidade, o outro discute teoria política com o pai, elaborando teses sobre a superioridade do maoísmo sobre os escritos de Marx e a atuação de Trotsky —, a respeito da qual terão de apresentar exposições muito bem fundamentadas, suam em exercícios de calistenia ao ar livre. Ainda que queiram bem uns aos outros, vivem com numa mistura de universidade e quartel, sem vez para ócio de nenhuma espécie, nem o criativo.

A abordagem de Ross vai num crescendo de completa acriticidade, como se tudo o que se viu ali até então fosse a oitava maravilha — a insistência de Zaja, a caçula, vivida por Shree Crooks, em se manter nua em meio aos outros é, no mínimo, preocupante, e em dada altura, Rellian, de Nicholas Hamilton, fratura o pulso num escalada nas pedras, exercício de rotina entre eles, mas não é imediatamente resgatado por Ben — e não houvesse nada nem ninguém digno o bastante para apontar incorreções. Essa conjuntura começa a mudar, entre os personagens e para o espectador, quando Leslie, papel de Trin Miller, morre. Finalmente despontam alguns traços patológicos da personalidade de Ben, que anuncia o passamento da esposa, há muito internada num hospital psiquiátrico para tratar crises severas de transtorno bipolar, da forma mais cortante possível, sem mover um músculo. A mãe das crianças cometera suicídio cortando os pulsos — Ben não as poupa de nenhum detalhe —, e, claro, ficam os cinco ainda mais consternados. A reação de Rellian, que já dava sinais de insatisfação com aquela vida, é especialmente violenta, dando a Hamilton a chance de uma das melhores performances da trama. É justamente Rellian quem ridiculariza o pai por celebrar o Sete de Dezembro como o Natal deles. A data faz menção ao nascimento do linguista americano Noam Chomsky, uma metáfora sutil da rejeição ao Deus comum ao restante da humanidade, preterido, mas cujo posto é instantaneamente ocupado por uma figura pagã, evidenciando que todos, crentes ou não, têm figuras a quem prestam suas honras.

A morte de Leslie desencadeia o conflito central do filme. A ida de Ben e os cinco filhos ao funeral torna-se uma questão insuportavelmente problemática, uma vez que Jack, papel de um Frank Langella em grande forma, não aceita que o genro, que para ele desvirtuou sua filha, compareça à cerimônia. Eles vão mesmo assim e a chegada dos seis à igreja onde acontece a missa de corpo presente é o clímax do enredo. O que acontece depois, com passagens que gradualmente pendem contra o personagem de Mortensen, até uma solução definitiva para a contenda entre Ben e Jack, e este último ganha o status de dono da verdade, ao menos nesse caso, quando as diferenças poderiam ter sido muito mais respeitosas de parte a parte. Radicalismos se retroalimentam e se mostram interdependentes, eis a grande lição em “Capitão Fantástico”.


Filme: Capitão Fantástico
Direção: Matt Ross
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.