O filme encantador, na Netflix, que vai lavar sua alma e melhorar sua vida Divulgação / Arenas Entertainment

O filme encantador, na Netflix, que vai lavar sua alma e melhorar sua vida

Desde sempre, o homem tenta situar-se no mundo, esmerando-se também por encontrar consolo para suas dores e possíveis respostas para as angústias fundamentais que o afligem. Boa parte dessas respostas só será alcançada em se abandonando um pouco o mundo das ideias, e em muitas circunstâncias, o próprio mundo real, e deixando-se trespassar por influências de outras dimensões. Quanto mais racional alguém se torna, mais árduo é crer que haja mesmo forças externas sobrenaturais a atuar sobre sua vida, sobre a vida daqueles que o rodeiam, tanto para proporcionar a essas pessoas consolo diante de momentos particularmente difíceis como para embaralhar ainda mais o cenário, fazendo com que a vida fique inextricavelmente nebulosa. Da mesma maneira como existem as tantas entidades benfazejas que, malgrado não sejam poderosas a ponto de mudar o destino de quem quer que seja, mas oferecem sua valiosa colaboração quanto a tornar ligeiramente mais afável a sina do homem, há as que se dedicam com igual afinco a perturbá-la, fazendo com que sua vida mergulhe num caos tão minucioso que soluções definitivas, fáceis — e erradas — tomam a frente. E se isso acontece, não existe mais nenhuma chance de solução judiciosa no horizonte.

Precursor da literatura chicana, o romance “Bless me, Ultima”, de Rudolfo Anaya (1937-2020), discorre sobre os constantes entreveros entre cidadãos de origem mexicana e os americanos que habitam as proximidades das fronteiras entre os Estados Unidos e o país vizinho de uma maneira doída e tão direta quanto comovente. Essa condição um tanto esquizofrênica, que perpassa a reivindicação por igualdade de direitos e respeito cívico de toda uma gente, ávida por se fazer ouvir, por conseguir furar a bolha, é muito bem absorvida pelo diretor Carl Franklin, que faz da adaptação cinematográfica homônima do livro de Anaya um estudo sociocultural sobre semelhanças, divergências e, o mais importante, a discriminação contra visões de mundo que não partilham dos mesmos ideais que as correntes majoritárias. A publicação algo recente de “Bless Me, Ultima”, em 1972, está para a literatura hispânica como romances de formação a exemplo de “As Vinhas da Ira” (1939), o clássico de John Steinbeck (1902-1968), e “O Sol É para Todos” (1960), da pena certeira de Harper Lee, para o cânone literário americano. O trabalho de Franklin faz justiça à mansidão assertiva de Anaya, equilibrando-se entre registrar as percepções ingênuas de seu herói enquanto abre espaço para a inserção de personagens que encaminham a trama para um lado ou para o outro, em que assuntos como espiritualidade, fé, curandeirismo e a consequente reação da Igreja são abordadas de maneira frontal.

Antonio, o personagem de Luke Ganalon, é um menino vivendo numa cidade do Novo México, sudoeste dos Estados Unidos, nos estertores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seus irmãos, já adultos, são convocados para as frentes de combate, e algum tempo depois, Ultima, uma parente distante e idosa, vai morar com a família. Interpretada com uma sensibilidade que une domínio técnico raro ao dom de entender o que deve ser enfatizado em seu papel, Ultima, uma performance mediúnica de Míriam Colón (1936-2017), desenvolvera ainda cedo talentos sobrenaturais, e é temida — e constantemente importunada — por sua fama de bruxa, conhecedora de sortilégios malignos com que condena os que ousam persegui-la. A anciã leva Antonio aos atendimentos dos colonos do lugar, como o que salva da morte Lucas, de Reko Moreno, filho de Narciso, um dos latifundiários mais ricos do Novo México, vivido por Joaquín Cosío. Indignado com o prestigio que a feiticeira conquista junto à população humilde e inculta do pueblo, Tenorio, papel de Cástulo Guerra, torna-se seu inimigo figadal, voltando sua fúria também para Antonio.

Franklin opta por direcionar o roteiro, coescrito com Anaya, para as reações de seu herói mirim quando confrontado com as situações mais díspares e absurdas, desde a intolerância ferozmente irracional das outras crianças no momento em que Antonio começa a frequentar a escola, as tentativas de subjugação de Ultima por Tenorio, que numa boa sequência em que afronta a bruxa, é atacado por um insuspeito aliado da curandeira. Tópicos paralelos, mas fulcrais, como possessão demoníaca, a hegemonia da Igreja sobre os habitantes de todo o vilarejo, a miscigenação de americanos e a população mexicana que vivia nos territórios limítrofes e, claro, política, entram nesse caldeirão a conta-gotas, cada qual desses elementos conduzindo o filme a um propósito que vai muito além da mera especulação pseudofilósofica. E se fosse só por isso “Bless me, Ultima” já seria um grande filme.


Filme: Bless Me, Ultima
Direção: Carl Franklin
Ano: 2013
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.