Fala-se muito de Pablo Picasso. Todo mundo já ouviu alguma vez na vida falar em seu nome. E com justiça, visto que o espanhol é o Pelé das artes visuais. Os leigos neste assunto, naturalmente, não sabem definir porque, mas ele é o maior gênio da pintura desde Michelangelo. E Jan van Eyck? E Rembrandt? E Velázquez? E Monet? E Delacroix? E Mondrian? Bem, felizmente inúmeros gênios existiram para nos encantar, desde a Renascença. Mas a questão não é apenas de talento, e sim, também, de influência. Picasso conjuga talento e influência num grau somente comparável a uns poucos artistas ao longo da história. E é por isso que supera qualquer outro artista desde o remoto século 16. Este é um critério bastante objetivo e até mensurável, embora alguns tenham o direito de eventualmente discordar dele. Conquanto o próprio Picasso seja uma síntese de diversas influências — pessoalmente Cézanne é a maior delas —, nenhum talento individual precedente revolucionou a arte depois de si como ele o faria, em vários séculos. Nem mesmo Rembrandt, nem mesmo Monet.
De modo muito simples, antes de Picasso a arte era figurativa, e depois não necessariamente: podia também ser concreta (ou abstrata). Depois de Picasso, sobretudo, a arte torna-se um conhecimento autorreferente. O sonho simbolista da ‘Art pour L’art’ encontrou nele o perfeito sonhador. Nunca existiu isso no passado: pode-se dizer que, antes dele, a pintura era invisível, no sentido de que era uma representação do mundo natural, ou pelo menos dependente de alguma representação. Já esses quadros estranhos que vieram depois dele, responsáveis pela clássica pergunta “O que significa?”, só foram possíveis após a revolução que operou. Mondrian parece ser algo totalmente novo, e é fato que fez algo diferente. Porém o germe do neoplasticismo, como da maioria dos demais movimentos da vanguarda, é aquela pintura surgida em 1907, que decompôs pessoas e objetos até os tornarem irreconhecíveis, e que apenas o título permite associar a alguma coisa “real”. Matisse é tido como o único rival possível de Picasso no interior do modernismo. Porém Matisse — mestre absoluto da cor — nunca abandonou o referente: o motivo sempre povoou seus quadros, pelo menos até antes de Picasso libertar a pintura dos grilhões da realidade. Só então o próprio Matisse abstraiu por completo.
É verdade que Picasso não criou sozinho o cubismo. O francês Georges Braque divide essa imensa glória com ele. Portanto, é justo reconhecer que Braque é um dos pais da arte abstrata (um terceiro pintor, num sentido totalmente diverso e independente, é Kandinsky). Porém, Braque nem manifestou um talento tão pletórico nem exerceu tamanha influência pessoal sobre tantos artistas, no século posterior a ele. Neste sentido, o talento de Picasso é dos mais ricos e abundantes que existem. Prova-o não apenas a quantidade de obras que nos legou, mas também a variedade de estilos que sugerem uma mente absolutamente livre e sem preconceitos. Picasso nunca aderiu a um estilo. Embora tenha criado o cubismo (sintético e analítico), nunca foi apenas cubista. Embora tenha criado a arte abstrata, voltou a ser figurativo sem qualquer receio. Aventurou-se pelo surrealismo, e é difícil dizer que não foi também expressionista. Giorgio Morandi, que Giulio Carlo Argan define como “o maior pintor italiano do século 20”, parece um monomaníaco dedicado a pintar apenas louças e garrafas. Quem o vê uma vez, na vida, possivelmente o reconhecerá para sempre. Picasso não: somente quem entende de pintura sabe identificá-lo na riquíssima profusão de si mesmo. É inconfundível.
Um paralelo imperfeito em outro gênero, porém interessante, é James Joyce. Não existe uma prosa cubista, como existe uma prosa romântica (Stendhal) e uma prosa impressionista (Proust). Guillaume Apollinaire intentou poemas cubistas, mas romances com essas características mostraram-se inviáveis. Daí a imperfeição do paralelo. Salvo isso, “Ulysses” (1921) tem a mesma importância cultural que “Les Demoiselles d’Avignon” (1907). É a obra seminal que norteia e revoluciona uma época por uma razão semelhante: porque é um paroxismo verbal da mesma maneira que o cubismo é um paroxismo pictórico. Nos dois casos há uma inversão dos termos: a representação passa a servir à linguagem, e não o inverso. E depois de “Les Demoiselles d’Avignon” a pintura libertou-se do mundo natural como seria impossível para o verbo fazer, pela literatura. Mesmo assim Joyce vai ao limite em seu próprio terreno, a ponto de também se tornar ininteligível. A razão disto é que, tanto quanto Picasso, Joyce busca a forma mais radical possível: conta uma história desarticulando totalmente a linguagem conhecida. Destrói palavras, cria outras. Desarranja a sintaxe. Potencializa a semântica. Espaço e tempo caem num vórtice alucinante, poliédrico. A prosa funde-se com a poesia, o gênero mais próximo da pintura no universo das letras. “Ulysses” é uma recriação quase total do mundo pela palavra, só comparável à recriação da imagem pelo cubismo. Cabe-lhe com justeza a mesma clássica pergunta, em tom desconfiado: “O que significa?”. Muitos, até hoje, não sabem dizer. Mas o encanto é inquebrantável e permanente, como no caso de Picasso, cujo sentido tampouco conseguimos interpretar. E isso importa, quando diante de uma pintura ou poema sentimos estesia, que é a emoção despertada pela estética? Provavelmente não: causar estesia é a única função indissociável da arte.
Até mesmo o desenho torna-se pintura, ao toque de Picasso. É um fenômeno novo. A certa altura seu desenho é uma garatuja que não pretende apenas contornar alguma coisa, como se atribuiu à linha fazer, desde sempre. Tal como a cor, o desenho liberta-se da representação para se reorganizar no espaço segundo as leis da forma, indo da sugestão até a mais completa abstração. Não existe mais harmonia, no sentido clássico, nem proporção, nem equilíbrio ou simetria. Tudo é reinventado, em novos termos. Como acontece com as palavras, em Joyce. Há nisto muita coisa envolvida: intuição, inconsciente. Mas o cubismo, em particular, é a arte como consciência de si mesma; consciência num sentido que transcende o movimento pioneiro desta nova concepção de arte: o impressionismo. Depois de Picasso a arte, que parecia ter se esgotado num beco sem saída, descobriu um novo caminho, muitíssimo diferente do de qualquer outra época. É o caminho que vigora até hoje, quando a tecnologia impõe uma nova crise, à espera de um novo Picasso.
É possível que a pintura, como forma artesanal e material, desapareça de nossas vidas. Da mesma maneira que pode acontecer com o livro físico. A realidade digital, virtual e imersiva impõe necessariamente suas próprias técnicas, e parece exigir a reinvenção de um novo conceito de arte, mais adequado talvez ao de Duchamp. Mas o conceito stricto sensu que temos de pintura, desde 1907, é ainda o de Picasso. E, neste sentido, Picasso é a própria pintura, encarnada numa pessoa de carne e osso.