A poesia para tempos difíceis

A poesia para tempos difíceis

Ficou conhecida a provocação de Theodor Adorno sobre o desafio de fazer poemas depois dos campos de concentração. A indagação apareceu no pós-Segunda Guerra Mundial. Não haveria uma escrita capaz de apreender o sofrimento causado por cidadãos europeus, no coração de que se imaginava ser a civilização exemplar para o mundo todo. Quem produziu o alto pensamento ao longo da História, realizou uma “exibição de atrocidades”, conforme disse bem um romancista inglês.

O Tempo Adiado e Outros Poemas, de Ingeborg Bachmann (Todavia, 208 páginas)

No meio da pandemia de Covid-19, os leitores e as leitoras no Brasil tiveram acesso à poesia mais elevada da era das catástrofes. Saiu a coletânea “O Tempo Adiado e Outros Poemas”, da austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973). Também foram editados “A Rosa de Ninguém” e “Ar-reverso”, do romeno Paul Celan (1920-1970). Eles foram amigos de uma vida inteira, amantes, e trocaram cartas reunidas no livro “Tempo do Coração — Correspondência”, lançada em Portugal pela editora Antígona. 

Celan foi um escritor exemplar do trauma do holocausto, assim como o italiano Primo Levi. Viu, assistiu e sentiu na pele as barbaridades dos nazistas. Compartilhou com os seus carrascos a língua alemã, da qual foi um dos “mestres antigos” do século 20, mas a memória o atormentou. Foi a experiência tão inassimilável, a da carnificina dos campos de concentração, que certo dia Celan se jogou no rio Sena, em Paris, para dar fim à vida e ao que jamais conseguiu esquecer.

“Mínimas, as palavras são mais eloquentes. Declaram o deserto interno latente à chaga do Holocausto. A solidão ainda crescia por ser um poeta usuário da mesma língua dos seus assassinos. A língua ainda poderia ser sua companheira caso Celan não recusasse manter a tradição, forte na reflexão poética alemã, do poeta como vates, figura por excelência capacitada para provocar a catarse de si próprio e do leitor”, observa Luiz Costa Lima, num belo ensaio do livro “A Ficção e o Poema”.

‎ A Rosa de Ninguém, de Paul Celan
‎ A Rosa de Ninguém, de Paul Celan (Editora 34, 192 páginas)

O “vates” é o adivinho, o vidente, o profeta, aquele que enxerga o que os outros jamais conseguem perceber. O clássico poema “Salmo” ganhou nova tradução, deixando claro a força esclarecedora da escrita de Celan: “Ninguém nos molda outra vez de terra e barro,/ ninguém encanta nosso pó,/ Ninguém// Louvado seja Você, Ninguém/ Por ti queremos/ florescer./ De encontro/ a ti// Um nada/ éramos, somos, continuaremos/ sendo, florescendo:/ a rosa de nada, a/ rosa de ninguém”.

Só um espírito intenso como o de Ingeborg Bachmann poderia ter uma conexão com uma figura da estatura de Celan. Eles mantiveram uma relação amorosa que torna a coleção de cartas um quase romance epistolar. E houve um terceiro personagem nessa amizade: o escritor suíço Max Frisch, com quem Ingeborg passou a viver a partir de 1960. De novo, as cartas são a impressionante porta de entrada para esse mundo doméstico de angústias, traumas e pequenas esperanças.

No pós-Segunda Guerra, as grandes expectativas tinham de conviver com a melancolia. Um certo pessimismo que mantinha os humanos com os pés no chão — e sobretudo alertas para o risco de fim do mundo a qualquer momento. “Vem aí dias piores/ O tempo adiado até nova ordem/ surge no horizonte”, assinala Ingeborg no extraordinário poema “O tempo adiado” (1953). “Não olha para trás./ Amarra seus sapatos./ Espanta os cães./ Joga os peixes no mar./ Anula a anileira!// Vêm aí dias piores”.