Um festival, três museus e um monte de questionamentos ou a segunda parte de um diário que não sei se irá para frente Pablo Regino / MTur

Um festival, três museus e um monte de questionamentos ou a segunda parte de um diário que não sei se irá para frente

Um bom começo de dia no FICA pode ser com uma atividade que recomendo bastante; um city tour pelo centro histórico de Goiás, com direito a visitar alguns de seus museus e a história da cidade em explanações do guia local.

Começando pelo Museu da Boa Morte, onde nos extasiamos com a arte de Veiga Valle (1806 – 1874) cuja formação é pouco conhecida e supõem-se autodidata, foi um artista no sentido lato da palavra, alguém que apesar de ter exercido outras atividades, como juiz, vereador e major da guarda nacional, tinha na atividade de “santeiro” a oportunidade de exprimir sua veia artística através da escultura e também na “douração” de altares e igrejas das cercanias. Seu trabalho, de orientação barroca, demonstra o quanto a arte da época era essencialmente promovida por e para a matriz religiosa.

Avançando no tempo e espaço, encontramos no palácio Conde dos Arcos um exemplo do que teria sido — mesmo que diversas vezes alterado em função da própria mudança de gestões — a sede do governo do estado. Mas o que acaba nos atraindo bastante e trazendo o primeiro questionamento, é a pequena exposição de areias que dão uma ideia da expertise e pioneirismo de Goiandira do Couto (1915 – 2011). Essa artista excepcional desenvolveu uma técnica de pintura com areia tendo também catalogado mais de 500 tipos de cores diferentes dessas areias — coletadas na Serra Dourada — e essa pequena amostra foi a única oportunidade de se apreciar sua arte, uma vez que seu estúdio está fechado desde seu falecimento, perdendo assim a oportunidade de se ter mais um interessante espaço para divulgar a arte feita em Goiás. Guardadas as devidas proporções, um museu dedicado à Goiandira poderia ter o mesmo impacto para as artes plásticas goianas (e o turismo), que a obra de Cora tem para a literatura. 

No Museu das Bandeiras somos apresentados a um passado mais sombrio, pois o local foi usado até a metade do século passado como cadeia pública. E que cadeia; já ouviram falar sobre uma enxovia? É um tipo de cárcere subterrâneo, uma verdadeira masmorra, onde os infelizes que eram presos — por sabe-se lá que motivos, até embriaguez, com o perdão do trocadilho, dava cana — acabavam recolhidos. Um local escuro, úmido e insalubre que nos relembra o quanto este estranho bicho chamado ser humano consegue ser inventivo na hora de maltratar seu semelhante. Lá também encontramos a Cruz do Anhanguera, que teria sido trazida por Bartolomeu Bueno (1672 – 1740), o filho, em uma de suas expedições e passou por toda uma epopeia histórica e até jurídica para terminar exposta aqui.

A Casa de Cora Coralina (1889 – 1985) não considerei como um museu: entrar ali é uma viagem no tempo, uma imersão no universo particular de uma poeta que teve uma vida extraordinária, apesar de escrever desde bem moça — aos 14 já tinha poemas em jornais — só foi publicar uma obra própria quando contava com quase 76 anos de idade. E acabou por se tornar a personalidade literária goiana mais conhecida tanto no Brasil quanto no exterior. Ao visitar sua casa, mantida da mesma forma de quando a dona ainda lá residia, pode-se ver desde seus livros, a cozinha onde fez os famosos doces (atividade que a sustentou por anos), objetos pessoais, etc. E, para quem gosta de literatura, ter contato com o “mundinho particular” de uma escritora de sucesso é uma experiência no mínimo gratificante.

Mas um dia em um festival de filmes não estaria completo se não acabasse por assistir as produções que estão na mostra. E a curadoria do evento nos presenteou com obras que abordam diferentes temas que envolvem a sociedade e seu trato com o meio ambiente, do qual ela tanto depende e também destrói.  Nestes dias tivemos a exibição de películas que tratam de abordagens como as relações de gênero e uma representante da luta de sexworkers por melhores condições para suas atividades; as transformações que a humanidade fez em seu entorno, sob a ótica do crescimento de um bairro periférico; a luta de atingidos por uma tragédia ambiental promovida pela ganância de uma grande empresa; as experiências de pessoas que se sentem totalmente deslocadas, expatriados que não se sentem como pertencentes a nenhum lugar específico e como usam este sentimento para produzir arte; o relato de um dos sobreviventes do acidente com o Césio-137, um dos maiores traumas da psique goianiense, entre várias outras.

Algumas obras são polêmicas, outras singelas, umas nos chocam com as verdades que trazem, ao nos fazer voltar os olhos para fatos que normalmente não nos atemos, mas todas, com mais ou menos intensidade, nos trazem seu quinhão de questionamento — e esta é uma das missões da arte, o que suscitar a reflexão, o pensamento: Como promover o desenvolvimento sem comprometer a saúde do planeta e de nós mesmos? De que maneira coexistir pensamentos tão diversos, culturas tão diferentes, sem anularmos uns aos outros? Quais os possíveis caminhos para evitar e revertemos os erros já cometidos na busca por aquele futuro que nunca chega? Porque Goiandira do Couto não tem um museu?

Há toda uma plantação de questionamentos em crescimento… Que saibamos colher as respostas.


P.S. Aos poucos a cidade começa a encher e percebe-se que o festival está em processo de fermentação.

P.S. 2 E o outro cara que estaria escrevendo para a Bula, hein? Nem para pagar uma cerveja…