Considerado um dos maiores filmes da história do cinema, clássico com Robert De Niro acaba de chegar à Netflix Columbia / TriStar

Considerado um dos maiores filmes da história do cinema, clássico com Robert De Niro acaba de chegar à Netflix

Poucos filmes conseguiram capturar a essência de um homem amargurado, refém da própria solidão, como “Taxi Driver” e poucos diretores souberam como devolver a um homem como esse sua natureza humana, extraindo-lhe as emoções mais profundas, empedernidas, como Martin Scorsese. A carreira de Scorsese se confunde com a história do cinema contemporâneo ela mesma. Desde “Quem Bate à Minha Porta?”, rodado em 1968, quatro anos depois de formado em cinema pela Universidade de Nova York, aos 22 anos, Scorsese mostra uma vontade muito particular de apresentar o que entende do mundo; o que sabe sobre ser parte da  minoria no país-símbolo da democracia, e ainda tão preconceituoso; o que sente quanto a ter se tornado o porta-voz de uma geração meio perdida entre ideais de liberdade e a premência de se ganhar a vida, erigir fortuna e escapar à sina de perdedor, à espreita de todos, ainda hoje tão avassaladora nos Estados Unidos. Em “Taxi Driver”, não por acaso lançado em 1976, na esteira do fim da Guerra do Vietnã (1955-1975), um ano antes, percebe-se um pouco de cada um desses elementos, um esforço do cineasta quanto a tragar o espírito de seu tempo e absorver a necessidade de transformá-lo em alguma medida.

O homem em torno de quem “Taxi Driver” se move, Travis Bickle, é tudo o que seu país repele. Egresso da Guerra do Vietnã — para isso ele servia —, Bickle, talvez o maior personagem de Robert De Niro numa galeria de tipos tão díspares quanto grandiosos, como os personagens centrais de “O Poderoso Chefão” (1972), dirigido por Francis Ford Coppola; “Era Uma Vez na América” (1984), levado à tela por Sergio Leone (1929-1989); e “O Irlandês” (2019), também de Scorsese, encontra a alternativa mais cômoda de faturar algum dinheiro, valendo-se de uma insônia  renitente: candidatar-se à vaga de concessionário numa empresa de carros de aluguel, querendo primeiro, na verdade, livrar-se do falta de sono e dormir umas boas horas — como tudo nele é caótico, ao passo que reclama por não dormir, toma pílulas ao fim do expediente do que parece ser um estimulante, talvez acostumado à ideia de nunca descansar, de qualquer minuto de ócio ter se convertido numa imperdoável perversão de caráter. Excelente motorista, sossegado, dono de uma ficha invejável no departamento de trânsito, um sujeito literalmente boa-praça, Bickle conquista o emprego, e esse ponto de virada do roteiro de Paul Schrader marca uma perspectiva transformadora para o mais novo taxista de Nova York.

Livremente inspirado em “Rastros de Ódio” (1956), filme de John Ford (1894-1973), o texto de Schrader, colaborador de Scorsese em “Touro Indomável” (1980) junto com Mardik Martin (1934-2019), longa também protagonizado por De Niro, se estende por sobre as noites intermináveis de Bickle ao volante, frisando a recrudescência de suas psicopatias enquanto trabalha, momento em que o publico começa a conjeturar se o ex-soldado não teria optado por esse ofício para permanecer em combate de algum modo. Ele é mostrado perseguindo Betsy, de Cybill Shepherd, secretária do comitê eleitoral do senador Charles Palantine, de Leonard Harris (1929-2011), com quem trava um contato breve e medonho — o pano de fundo político é bastante diáfano aqui. Betsy, casada, cede às investidas do anti-herói scorseseano, mas ele põe tudo a perder já no primeiro encontro ao levar a moça a um cine pornô. Ela, por óbvio, rompe qualquer promessa de relação que possam ter tido. Os dois só tornam a se falar, sem muito interesse de parte a parte, na sequência final de “Taxi Driver”, quando Bickle usufrui de certo prestígio inútil depois de ter ajudado Iris Steensmas, a prostituta juvenil de Jodie Foster, a se livrar da subjugação de Sport, o cafetão interpretado por Harvey Keitel. A contragosto da menina, diga-se, que talvez vivesse muito melhor com seu algoz e amante do que na casa dos pais no interior, para onde foi mandada.

Como tudo na vida desse infeliz é torto e todas as suas tentativas de estabelecer conexões para além de si próprio soçobram miseravelmente, é impossível dizer se o episódio com Iris ou mesmo o reencontro com Betsy são de fato verídicos ou deturpações de uma cabeça irremediavelmente perturbada. Martin Scorsese e Robert De Niro fazem de “Taxi Driver”, uma das mais importantes obras-primas da história do cinema, um elogio à loucura, senhora de tempos de guerra e de paz.


Filme: Taxi Driver
Direção: Martin Scorsese
Ano: 1976
Gêneros: Drama/Violência
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.