O Brasil que nasceu de São Paulo

O Brasil que nasceu de São Paulo

De todos os problemas que ocupam o governo de Deodoro da Fonseca (1889-1891), sem dúvida o mais importante é o que se refere à institucionalização da forma de Estado que justificou o golpe do dia 15 de novembro. Sem um ordenamento jurídico que defina a nova situação política do país, torna-se impraticável administrá-lo de acordo com o espírito insurgente, pretensamente republicano. O marechal e futuro presidente da república sabe disso, mas tanto ele quanto uma parcela significativa das forças armadas — e até um membro civil de seu ministério, Demétrio Ribeiro —, revelarão no momento oportuno suas tendências autoritárias. A transição para o novo regime, franqueado pela espada até que se legalize a situação de fato, encarna uma ideologia que não deve ser, aos olhos de todos os elementos que acabam de depor o imperador, Pedro II, necessariamente descartada em favor da alternativa democrática, assim que haja uma Constituição. Nem todos os revolucionários têm espírito democrático, embora sejam todos eles partidários de um liberalismo pelo menos econômico. A ditadura satisfaz uma parcela importante dos responsáveis pela queda do Império, o que define as facções em jogo e conduz gradativamente ao acirramento das opiniões; finalmente, à ruptura que abrirá caminho à ordem civil.

Deodoro da Fonseca, o general monarquista que proclamou a república

Não há desde agora, passados os primeiros dias do golpe, unanimidade em nenhum dos lados, de sorte que o movimento pela restauração constitucional é formado por elementos não só civis quanto militares, também. O que pode ser discutido são as motivações claramente distintas entre si, dos grupos, mas não a divisão no seio das duas classes que, num desfile matutino e algo patético pelas ruas da capital federal, sem o envolvimento e ao menos o clamor das massas, puseram fim ao reinado que, de uma forma ou de outra, nos ligava ainda ao remoto reino transatlântico de Portugal. É provável que apenas os positivistas mantenham a unidade de pensamento e de ação, e são, todos eles, reconhecidamente partidários da ditadura, solução que o comtismo oferece aos males da sociedade e que, no Brasil, calou mais fundo do que em qualquer outro lugar do mundo, mesmo a França.

Albergados na sede do governo, os novos mandatários têm diante de si duas maneiras de deflagrar formalmente o processo de institucionalização da República, e a segunda e mais importante delas depende da outra, que é o valimento de decretos, meio possível de instrumentalizar a administração provisória. Dispondo desses atos, o órgão estatal que mais trabalha pela caracterização da nova forma de governo é o ministério da Justiça, entregue ao único republicano de São Paulo a integrar o novo governo: Manuel Ferraz de Campos Sales. Medidas como a separação entre Estado e Igreja — que resgata um anteprojeto atribuído a Rui Barbosa e Demétrio Ribeiro —, a transformação das províncias em estados, a secularização dos cemitérios e o registro civil entram em vigor logo nas primeiras semanas, após o 15 de novembro. Esboça-se juridicamente, desta forma, a República no Brasil, mas em função de sua origem essas medidas são ainda insuficientes e de alcance limitado. A competência maior é da lei, portanto é necessário uma Constituição e não decretos.

Quem primeiro insinua sua necessidade é um jurista de reconhecida convicção liberal, Rui Barbosa, já no primeiro dia após o golpe, e até abril outras vozes do próprio governo farão coro ao titular da Fazenda. Quintino Bocaiúva, do Exterior, e Campos Sales declararão nesse sentido. Deodoro acede, com a morosidade de um contrariado: em junho o governo formaliza o projeto da nova carta e providencia a eleição, nas ex-províncias, dos candidatos à Assembleia Constituinte, prevista para iniciar simbolicamente na data de aniversário da Proclamação. O zelo simbólico, todavia, escamoteia divergências fundamentais que na hora devida porão de lados opostos os golpistas.

Aquela eleição é um abuso e uma farsa, iniciando a intervenção nos estados e fustigando aquela que provavelmente seja a desgraça política da República: a disputa entre as oligarquias regionais que contaminam o centro do poder. Num sistema político, ou talvez numa cultura geral, onde os nomes — os “Neiva”, os “Bulhões”, os “Ponce”, os “Portela” etc. — são mais imprescindíveis ao andamento dos negócios públicos do que a regularidade abstrata das leis, obviamente que a Constituição daí emanada serve apenas para mascarar a realidade profunda do País. Na esfera da União não haverá, até 1894, uma disputa nas urnas, mesmo assim o poder das oligarquias será um dos elos do precário equilíbrio institucional. Por razões sociais e econômicas, a única força oligárquica que em 1889 consegue travar uma disputa nesse nível é a de São Paulo, organizada num partido, o Republicano Paulista, também o mais estruturado do País, na época. Pode-se com razão falar na conhecida fraqueza, no Brasil, dos partidos políticos, quanto mais na República Velha, mas o PRP funcionou relativamente bem como uma máquina eficiente e regular, desde os primeiros tempos de sua organização.

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Os problemas que ao longo de 1890 exigem mais atenção do ministério provisório, sobretudo dos auxiliares militares de Deodoro, são as sedições nos quartéis contra o governo e a negociação do Tratado das Missões com a autoridade argentina. Este repercute mal nas forças armadas; a oficialidade julga que ele é lesivo à soberania nacional, indispondo-se com o responsável pela questão, Quintino Bocaiúva. É um dos primeiros sinais do desgaste, que não tarda a cristalizar-se, entre militares e civis que dividem o poder, os quais acumularão dificuldades de outra ordem, e que talvez possam ser resumidos nos temas mais polêmicos, à época: a economia, a liberdade de imprensa e as concessões públicas. O segundo tema ensejará a primeira crise de gravidade no núcleo de poder, mas é em função do último que serão rompidos todos os fios que ligam Deodoro aos outros responsáveis pelo 15 de novembro. Poder-se-ia imaginar que a questão moral fosse decisiva para esse desfecho, muito embora o envolvimento com favores ilícitos de um dos mais tenazes críticos do presidente, o insuspeito Rui Barbosa, contrarie essa hipótese.

Campos Sales, o mais importante político paulista do período

 Obviamente, como afirma Leôncio Basbaum, a contradição entre os poderes executivo e legislativo é que determinará a sorte do governo, e não as disputas facciosas do gabinete. Não fosse, porém, o descontentamento generalizado dos ministros — à espera, talvez, da ocasião — contra o favoritismo oficial no episódio do Porto das Torres, não entraria em cena o Ministério Lucena, com todas as suas consequências desastrosas. Entre elas, a que nos interessa registrar em detalhes: a saída dos paulistas do governo: “as forças civis, lideradas por São Paulo, rompem com os radicais e jacobinos militares, pedindo a elaboração imediata da Constituição”. É um desdobramento decisivo, de profundas consequências políticas; talvez o instante primeiro em que se começa a desenhar a hegemonia paulista na estrutura do poder federal e, além disso, momento em que se percebe claramente o peso do Estado na política nacional. O próprio presidente desejara esse rompimento, cioso por livrar-se daquela confraria e beneficiar os amigos. Ademais, não se identificava ideologicamente com essas forças. Deodoro é apenas a encarnação das frustrações e expectativas da classe militar ascendida ao poder pelo concurso das armas. Infelizmente, seu temperamento pessoal, irascível e chantagista, somado às dificuldades que teve de separar o interesse público dos privados, e até dos particulares, foram ingredientes de fermentação da discórdia crescente entre ele e elementos do governo que, com sagacidade, souberam explorar tais fraquezas em seu próprio benefício.

O problema é que o debate sobre a constitucionalização da ordem republicana não tem mais, na avaliação da oposição, nenhum empecilho, e determinará sua ação daí por diante.

A demissão coletiva do ministério, já ameaçada de acontecer desde novembro do ano anterior, consuma-se a 17 de janeiro de 1891, e a 21 um aristocrata e monarquista, Barão de Lucena, apresenta a nova composição, agora sem nomes de prestígio. Campos Sales até foi convidado a reassumir o cargo que ocupava, e vacilou ao assédio, mas o que se discutia era a eleição presidencial para superar a etapa provisória do governo, havendo, ao que parece, discordância entre a cúpula do PRP e sua bancada. Por fim, Campos Sales decide permanecer no Senado, de onde antes se licenciara para servir ao governo como ministro. Entre novembro de 90 e janeiro de 91 — período em que se debate a Constituição no Congresso — opera-se uma indisfarçável desavença entre Deodoro e o Partido Republicano Paulista. Até janeiro, quando o primeiro ministério é substituído pelo de Lucena, o PRP mantém um de seus principais quadros junto ao presidente, que é Sales; por outro lado, controla o poder legislativo com Prudente de Morais. Dúbia, a bancada paulista vota de acordo com a oposição, calorosamente legalista. Não é à-toa que Lucena, sob a perspectiva da situação, atribui aos paulistas todos os males da República. Objetivamente, não deixa de ter inteira razão quanto ao poder de fogo dos representantes da grande lavoura cafeeira, no Congresso.

Um dos itens de votação na Assembleia, que trata diretamente do cargo presidencial, diz respeito à redução de seu exercício de seis para quatro anos, refletindo o temor de que o próprio Deodoro, ou outro elemento das forças armadas, ganhe as eleições que se seguirão aos trabalhos da Constituinte, conforme previsto. Sem contar que durante esse período, uma série de moções externa a soberania do parlamento e o caráter provisório do governo instalado. Não há nada de errado nisso, e é até saudável partindo de uma cúpula que fosse francamente democrática, mas todos conhecem o temperamento personalista de Deodoro: de sua lógica particular, o marechal interpreta tais manifestações como ameaças veladas ao seu poder. A essa altura, o parlamento já se apresenta à opinião pública como o bastião da vontade nacional, o que desperta a ira dos grupos que propugnam pelo império pessoal do chefe do poder executivo. Como já foi dito, esta é a vontade dos militares jacobinos e dos positivistas, a fração autoritária da encarniçada disputa política que tentamos destrinchar.

A discussão que tem maior repercussão e provoca as piores reações diz respeito à eleição presidencial. Deodoro, com o apoio do Clube Militar, quer manter-se no cargo. É quando as articulações oficiais chegam ao prestigiado Campos Sales, em busca de apoio, uma vez que o PRP decidiu lançar um nome civil de sua inteira confiança: o do senador Prudente de Morais. Embora haja alguma expectativa de acordo por parte do Itamarati, é nesta conjuntura que São Paulo passa definitivamente à oposição: doravante, sua frente de batalha deixa de ser o executivo e será o parlamento, até as últimas consequências. O estado não é, ainda, a força hegemônica no país, pois, se domina com folga no Senado, a Câmara é presidida por um governista, posição que reverte em seu favor durante o exercício ordinário do Congresso, a partir de 15 de junho de 1891. Dá-se, então, o pleito presidencial, e o marechal é consagrado com 129 votos contra 97 dados ao adversário civil. É a tradução do medo, com que inaugura-se, no Brasil o primeiro governo constitucional republicano.

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Em nosso país, a constitucionalidade do poder só recentemente tornou-se garantia de estabilidade, e a eleição de Deodoro foi o primeiro teste desta natureza. O ex-ditador foi legitimado sob pressão por duas centenas de deputados escolhidos fraudulentamente com a anuência federal, mas logo convertida em oposição. Não basta a lei quando a inconstância é a dos espíritos, tampouco certos acordos quando as almas padecem do mesmo vício.

Tão logo é sufragado, o presidente volta a intervir nos estados para reorganizar sua base de apoio e, obviamente, infligir derrotas aos oposicionistas, principalmente, agora, São Paulo e Minas Gerais. Jorge Tibiriçá, governador pelo PRP, é afastado do Palácio dos Bandeirantes para dar lugar a Américo Brasiliense; além disso, a situação faz dois terços da representação regional. Em Minas, o poder federal depõe Bias Fortes e nomeia Cesário Alvim, atitude que custará caro: fará com que a maior bancada do Congresso alinhe-se à dos paulistas, cujo ataque é recrudescente. Não se poderia suspeitar, talvez, que essa atração circunstancial seria consolidada com o tempo, entre os dois estados mais ricos da federação. De aliança legislativa tornar-se-ia, mais tarde, executiva, como se fora não uma política de estados mas de Estado.

Rui Barbosa, liberal e constitucionalista de primeira hora

A 15 de junho de 1891, quando é aberta a primeira sessão ordinária do parlamento republicano, Prudente de Morais é eleito vice-presidente do Senado, cargo que exerce na prática, dado o afastamento do titular de direito, Floriano Peixoto. A Câmara ainda resiste à ofensiva oposicionista e paulistana, escolhendo um líder identificado com o Itamarati, Mata Machado, que, todavia, vence a disputa com Bernardino de Campos por uma diferença pífia. Na primeira das duas casas é posta em discussão a lei que, segundo a avaliação dos setores militares deodoristas, justificará o golpe de 3 de novembro. É a que enquadra o presidente por crimes de responsabilidade. Outra vez não se pode dizer que a ideia seja perniciosa, porém isso depende: Deodoro não era homem talhado pelas convicções republicanas e democráticas, como de resto não o são aqueles que o sustentam. Com efeito, avalia que o princípio atinge o homem por trás do presidente e não a instituição que, por uma contingência qualquer, ocupa. Não poderíamos censurar a distorção: o princípio é bom, mas os que o defendem o fazem menos por convicção do que razões muito práticas, ligadas a interesses imediatos. O presidente veta o projeto e gera um novo impasse. 

A gravidade da situação política é tal que leva o Barão de Lucena outra vez a procurar Campos Sales, a fim de negociar: em 14 de setembro voltam a reunir-se para discutir o retorno do PRP aos círculos do poder executivo. O partido de São Paulo rejeita a sugestão para que ocupem duas pastas, quando pretende três, e Antônio Glicério dirá algo sintomático e revelador do poderio paulista, à época: acha ele que só dois ministros “não podiam imprimir à direção governativa o cunho da nossa política”. O fracasso da negociação contribui para explicar os desdobramentos da crise. À revelia do veto presidencial, os projetos sobre os crimes de responsabilidade voltam ao Congresso e é aprovado nas duas casas. Antes disso, Mata Machado renunciara ao seu cargo e Bernardino de Campos fechara o cerco, a favor da oposição e, nos termos de Glicério, do “cunho governativo” imprimido pelos interesses de São Paulo. O equilíbrio entre os poderes — e, portanto, de forças —, está estabelecido, culminando no 3 de novembro. A resposta do governo aos seus adversários é incisiva, violenta: dissolve o poder legislativo e inicia a perseguição aos opositores.

Sucederá um contragolpe exitoso, onde importa mais uma reflexão específica sobre o papel das forças armadas do que, propriamente, sobre a intervenção política dos elementos civil e paulista. A marinha e o exército, com o apoio diversionista de algumas manifestações operárias, acuarão o governo, já debilitado. Debilitado, neste caso, não é expressão metafórica: Deodoro é de fato acometido por sua dispneia e resigna-se a entregar a faixa ao sucessor legal e “funcionário” incumbido de substituí-lo, como dirá ironicamente, remetendo-se a Floriano Peixoto. Porém, o desfecho dos acontecimentos não depende apenas do estado de saúde e abnegação pessoal de um indivíduo: ainda que esbanjasse saúde, as relações de forças sociais eram já totalmente adversas à continuidade de certas linhas de ação que o marechal representava. São elas que colocam em cena o governo de Floriano. A tendência gradativa das forças políticas é ir-se acomodando à base econômica dominante: “O governo republicano deveria pertencer, como seria lógico, aos donos das terras e dos meios de produção, isto é, aos republicanos objetivistas e realistas, os fazendeiros de São Paulo”.

Conclusão: A polarização das tendências que marca o governo de Deodoro resulta numa crise institucional entre os poderes executivo e legislativo, em torno da constitucionalização do regime. Essa crise foi traumaticamente interrompida por um elemento estranho ao jogo democrático, o exército, visceralmente entranhado nas estruturas do Estado. Autorizava-o, de um lado, a Constituição, e de outro a doutrina positivista do “soldado cidadão”. Neste jogo, a fração oligárquica paulista impõe uma séria derrota à primeira ditadura da República, quando coordena a batalha pela legalização do poder, criando um precedente capaz de gerar rusgas insanáveis que só se resolverão, de uma vez por todas, em 1930. Não garante aos paulistas, porém, a hegemonia do processo político em 1891. Por pelo menos mais um período, os barões do café terão de partilhar o poder com a classe militar.