Como pintar sonhos e pesadelos? Diferente de outros filões do modernismo, foi isso, essencialmente, o que os surrealistas se propuseram a fazer. Tal desafio é prova da atualidade deste movimento artístico em meados de 1920 (surge em 1924), repercutindo a nova psicologia do dr. Sigmund Freud. Teria, portanto, sólida base científica (ressalva feita, é claro, ao “princípio da falseabilidade”, de Karl Popper, que ameaçou devolver Freud à categoria de Xamã). A mesma ciência que afugentou as superstições passadas e instaurou a razão viera, de repente, anunciar ao mundo que o ser humano é muito menos racional do que se pensava. Estabeleceu, em tom fatalista, que o indivíduo era determinado pela infância, pela sexualidade e pelo inconsciente. Como isso repercutiria na cultura e como a arte lidaria com essas questões, revolucionárias à época? O surrealismo é uma das grandes respostas. A psicanálise — método de sondagem do inconsciente sistematizado por Freud — é uma das influências do novo movimento parisiense, teorizado pelo poeta André Breton. Outras fontes, também literárias, são o romantismo e o simbolismo, sendo o Conde de Lautréamont um dos pilares de Breton. Todas essas origens ideológicas desnudam a irracionalidade do homem, desacreditando mais uma vez o mito iluminista da razão.
Por este motivo os movimentos com que o surrealismo tangencia, entre os modernistas, são o expressionismo — talvez sobretudo a vertente Die Brücke (A Ponte) — e o dadaísmo, este mais que qualquer outro. Juntos com a escola metafísica de Giorgio de Chirico, na Itália, opõem-se em conjunto à arte como produto de uma certa racionalidade: o cubismo e suas derivações cartesianas, o concretismo russo e neoplasticismo holandês. (É possível que o concretismo brasileiro dos anos 1950, liderado por Waldemar Cordeiro, tenha sido o paroxismo quase inumano desta perspectiva, contra a qual se rebelaram Ferreira Gullar e o grupo do Rio.) Há entre cubistas e irracionalistas, enfim, um meio termo, na arte simbólica e espiritualista de mestres originais como Paul Klee e Kandinsky. O certo é que se Picasso e seus descentes conceberam a arte como forma, os surrealistas a conceberam como imagem do inconsciente. Se para os primeiros a arte tem um fim em si mesma, para aqueles é apenas um meio de acessar o nosso eu profundo. E se é construção “lógica” para seus antagonistas, na perspectiva do surrealismo é manifestação do absurdo. Daí suas técnicas características: o automatismo e a livre associação. Enfim, o surrealismo ensina a “nos liberar de todos os freios e censuras”, no dizer de Giulio Carlo Argan, estabelecendo pontes com a revolução política e dos costumes.
A ressalva é que Picasso, que nunca se ateve a um estilo, se aventurou também numa produção surpreendentemente surrealista, entre 1928 a 1930, quando se refugiou em Dinard, na França. Entre os autênticos signatários do manifesto de Breton, Salvador Dalí é o mais famoso; um dos mais famosos pintores do mundo em qualquer estilo, no século 20. Mas a celebridade de Dalí deve muito à personalidade extravagante que criou para si, de aristocrata lunático. É grande, porém comparado aos colegas de grupo não é o mais interessante entre os expoentes do movimento. Com frequência lembra mais um ilustrador de talento do que um pintor propriamente dito, sendo para as visões oníricas mais ou menos o que Andrew Wyeth foi para o realismo: um caso discutível. Não deixa de ser sintomática a sua popularidade, enquanto os melhores artistas do gênero — Magritte, Miró e Chagal — gozaram de um prestígio ao que parece mais discreto, junto ao grande público. Apesar do código comum, as diferenças entre todos esses artistas são mais visíveis do que a que existe entre os pintores de qualquer outro movimento de vanguarda.
O mais mórbido e sombrio é Paul Delvaux, obcecado por donzelas inexpressivas como bonecas e por thanatos. Como tal é o pintor desagradável das certezas mais perturbadoras, o qual ninguém gostaria de colocar na parede. Só tem apelo para galerias e museus. O mais próximo dele, porém diverso, é Max Ernst, criador de assombrações de outro tipo, como aquele “Angelo di Fuoco” (1937), que não gostaríamos de encontrar no meio da noite. Foi pródigo criador de uma fauna medonha, de aspecto rupestre. Não evoca terror no sentido extra-físico, de almas penadas: são conteúdos do inconsciente, cuja manifestação, no entanto, perturba nosso sono como qualquer espírito do além o faria. De estilo indefinido, suas imagens vão desde estranhíssimas paisagens oníricas até combinações aleatórias, particularmente interessantes nas suas gravuras permeadas de símbolos. O conceito de livre associação, explorado também por Dalí, é notável sobretudo em René Magritte, que consegue as soluções mais icônicas do surrealismo, como aquele enigmático personagem de chapéu coco flutuando entre as nuvens. Toda pessoa de cultura lembra-se dele. Associando as coisas mais corriqueiras Magritte tornou-se um dos mestres da ambiguidade, algo similar aos efeitos obtidos por Giorgio de Chirico, o pintor de enigmáticas praças e estátuas. O mestre francês parece dizer-nos que, apesar da razão, o mundo permanece sendo um mistério impenetrável, próximo realmente da imaterialidade metafísica. Merece nota o fato de que Dalí, Magritte e Delvaux recuperaram o desenho, que neles exerce a função “antiquada” de base pintura. Desenho, em certos casos, próximo do convencional e até perfeitamente acadêmico, como em muitas pinturas de Dalí (os retratos de sua amada Gala constituem excelente exemplo). Desde Velázquez nenhum espanhol — ninguém, na verdade — voltara a desenhar “tão bem”, porque o conceito de desenho mudou radicalmente desde o romantismo. Com Picasso tornara-se garatuja, sendo de vez abandonado pelos formalistas, que o aboliram em proveito da universalidade dos símbolos geométricos.
Marc Chagall foi pioneiro do surrealismo — desde o início em 1907 já fazia pinturas surrealistas, segundo depoimento pessoal, mas não achava que criava fantasias, sob o argumento de que “o mundo interior é realidade”. Era o mais “ingênuo” (leia-se avesso a teorias) desses pintores, sendo considerado surrealista mais por afinidade do que por filiação. Entre as qualidades oníricas de sua obra não consta o terror, porque é o avesso do terror. Como tal é um fabulista bastante agradável, explorando temas extraídos de sua cultura de origem, russo-judaica. Mesmo quando Chagall pinta o sofrimento — Cristo na cruz, a diáspora — seu imaginário é impregnado de um lirismo terno e amoroso, como se o amor perpassasse os seres e as coisas à maneira do ar, que tudo penetra. Esta associação entre pintura e poesia é flagrante em Joan Miró, sobre o qual escreveu João Cabral de Melo Neto, de quem era amigo. Miró é o único entre os surrealistas que desperta em nós o mesmo encanto que Chagall. Enquanto seus colegas Delvaux e Ernst causam-nos inquietude, o pintor catalão é também o avesso das pulsões lúgubres. Lúdico, poderia ser “lido” para crianças se fosse escritor, a fim de diverti-las francamente com seus signos e cores atonais, muito próximos da abstração. Próximos porque sempre se enxerga nele — avesso a significados —, algo de vivo e orgânico; estranhas criaturas envoltas por um cosmo explodindo vida. Sua arte é o sonho bom de um dos maiores líricos do século 20. Não foi por acaso que ilustrou poemas de Paul Éluard e Neruda, sendo influência decisiva sobre o mais original pintor norte-americano, Jackson Pollock.
Há outros grandes surrealistas europeus — André Masson, Yves Tanguy, Jean Arp — e há, também, reverberações surrealistas no modernismo latino-americano: Frida Kahlo e Rufino Tamayo, no México; Tarsila do Amaral, Ismael Nery e Flávio de Carvalho, no Brasil, por exemplo. É uma hipótese, pois existe a suspeita de que o sonho constitui a própria essência da cultura latino-americana. O peso do sonho é maior na literatura local, que produziu “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. Nada de tão expressivo valor literário foi criado por escritores surrealistas, na Europa. Aliás não vingou por lá uma literatura surrealista, enquanto algo próximo disso — a literatura fantástica ou o “realismo mágico”, de Alejo Carpentier — veio a ser a grande contribuição de nosso continente para as letras mundiais. Enfim, não poderíamos importar o surrealismo porque “ele” é inato à nossa cultura, dominada pelos instintos mais que pela razão.