A arte cinematográfica veio a se tornar o portento que é hoje graças ao pioneiríssimo Georges Méliès (1861-1938). O francês, primeiro diretor de cinema a realizar filmes como os conhecemos, foi responsável pela concepção de mais de 500 produções — em nossos dias, talvez fosse forçar um pouco a barra chamá-las assim, mas à época o que Méliès punha na praça era verdadeiramente revolucionário — em que, além de dirigir, foi roteirista, produtor, editor, montador e o ator principal. Lançados entre 1896 e 1913, as histórias eram repletas dos mais variados e impensáveis efeitos especiais, que ele mesmo criava.
Méliès conhecia do riscado. Mágico profissional, levou para a tela grandes truques como cenários que se multiplicavam, objetos de cena que sumiam no ar e personagens que apareciam em vários lugares ao mesmo tempo. Decerto, muita gente ficou encafifada ao presenciar um foguete que subia na atmosfera e ia se encravar no olho da lua, ícone da história da filmografia, em “Viagem à Lua”, de 1902, seu trabalho mais conhecido.
Em pouco tempo, Méliès conseguiu um feito admirável. Era querido por todas as categorias de público ao mesmo tempo em que conquistara o reconhecimento da crítica — ainda que esta não entendesse direito onde ele pretendia chegar, contudo saudava seu vanguardismo. Era um poeta soberbo, que no lugar das palavras, usava imagens, arte totalmente nova, impossível até então. Um homem de gênio, que fundia realidade e fantasia na sua essência mais obscura, dando corpo a obras de arte realistas e mágicas de uma só vez. Só mais tarde, ao constatarem que Méliès já gozava de algum prestígio entre os círculos mais refinados de Paris, os críticos assumiriam a natureza desbravadora de seu trabalho e o classificariam como o primeiro autor de cinema.
A obsessão de Méliès pelo que se tornaria a sétima arte nascera em 1895, quando assistiu a uma demonstração privada do cinematógrafo, uma engenhoca que reproduzia imagens fotográficas numa tela, mas dando-lhes movimento, vida. Soube que se tratava de um aparelho idealizado pelos irmãos Lumière e tentou a todo custo persuadi-los a lhe vender a máquina. Os Lumière, claro, recusaram e ele foi bater noutra porta. Adaptou o animatograma do projetor Robert W. Paul a fim de que funcionasse como uma câmera que punha o material fotográfico para rodar e, assim, obter o efeito que desejava. Por ser muito ruidosa, ele a chamou de metralhadora.
Equipamentos que faziam barulho em excesso não eram exatamente um problema quando só se conhecia o cinema sem som, mas Méliès estava insatisfeito e não sossegava enquanto tudo não ficasse como ele tinha em mente. Ia burilando suas descobertas, se aprimorando em suas manobras com a câmera e desenvolvendo outras. Toda essa dedicação pode ser conferida em 194 filmes, de duração entre 27 segundos e quarenta minutos, na ordem em que foram lançados e disponíveis para acesso gratuito no YouTube. O link da playlist com os filmes de Méliès está no fim do texto.
No que se pretendeu uma autobiografia do cineasta — escrita em terceira pessoa por um ghostwriter incumbido de entregar um “dicionário de homens ilustres”, ele se define como “um engenheiro de grande precisão” e “genial por natureza”. De fato, apesar da imodéstia, esse fundador do show business tinha sido mesmo essencial para que o cinema deixasse de engatinhar, desse seus primeiros passos e se firmasse como manifestação artística. Fazer cinema, como se depreende do relato de Méliès, era uma epopeia, tendo o herói de fabricar todo o arsenal de que fosse prescindir. Hoje, quem se propõe a fazer cinema acha com facilidade toda a aparelhagem necessária, cada vez mais moderna, graças à tecnologia. O que só faz ressaltar a genialidade de Méliès, bem como de Pathé, Gaumont e outros, criadores de máquinas que iam se sobrepondo e cedendo espaço a outras que atendiam melhor a demanda dos diretores e do mercado, em franca e incontrolável ascensão. Até que, enfim, surgiu Hollywood.
Martin Scorsese, a princípio um detrator do que Méliès fazia — para o americano, aquilo era outra coisa, jamais cinema — acabou, claro, tendo de engolir o que dissera: Scorsese foi obrigado, por óbvio, a igualmente lançar mão de inúmeras possibilidades inviáveis no mundo real (por causa dos custos, inclusive) para imprimir verossimilhança a obras como “O Aviador” e “O Irlandês”. Se o cinema do francês era fundado nos efeitos especiais, que conseguia materializar à custa de muito sacrifício, o que dizer do que se transformou numa indústria, uma genuína fábrica de ilusões?
Acontece que também nisso Méliès teve a primazia. Foi ele quem construiu o primeiro estúdio de cinema na Europa, sem descuidar dos filmes, muitos estrelados por ele — tudo isso sem computador. Embora o emprego de recursos como a computação gráfica seja o responsável por quase todo trabalho duro nos mais variados tipos de filme — nos de aventura, ficção científica e animação, sobretudo —, pode-se considerar Georges Méliès o inventor da Marvel, para o bem ou para o mal. E de Scorsese também.
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