Quem ainda precisa de heróis e, pior, de super-heróis?

Quem ainda precisa de heróis e, pior, de super-heróis?

É intrigante a quantidade de filmes de super-heróis exibidos nos cinemas nas últimas três décadas. Ninguém consegue escapar dos lançamentos da mais recente aventura dos Vingadores e das Viúvas Negras da vida. Também se tornou impossível acompanhar as sequências das “franquias”, pois não se sabe se o novo Batman é o décimo ou o vigésimo da série. Parece até que todo ator de Hollywood já fez o homem-morcego algum dia. Os vários Wolverine e Homem-Aranha são de perder a conta.

Alguns títulos trazem as expressões “returns” e “begins”, indicando a intenção de arrancar a última gota de suco no bagaço dessas laranjas antigas. Frédéric Martel conta a história de que, cansada de pagar pelos direitos dos super-heróis, a Disney tomou a decisão radical de simplesmente comprar a Marvel — dona do pote de ouro no final do arco-íris com os personagens mais famosos e rentáveis das bilheterias. Assim como havia o filme anual dos Trapalhões, hoje podemos esperar o super-herói da estação.

À primeira vista, é contraditória a disseminação do super-herói na época quando não existem mais tragédia e história épica. O romance do século 19 já havia enterrado o herói, como mostra Victor Brombert, que resgata uma fala exemplar do narrador de “Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski: “Um romance precisa de um herói, e todos os traços de um anti-herói estão expressamente reunidos aqui”. Não faz mais sentido louvar supostas virtudes em sociedades que se orientam pela selvageria do dinheiro.

“No século quinto a.C., o culto dos heróis havia surgido e se tornara uma espécie de fenômeno religioso. Heróis eram homenageados e reverenciados. Eram associados a uma era mítica em que se dizia que homens e deuses entraram em íntimo contato”, assinala Brombert, que acrescenta: “Eles vivem segundo um código pessoal feroz, são obstinados diante da adversidade; seu forte não é a moderação, mas sim a ousadia e mesmo a temeridade. Heróis são desafiadoramente comprometidos com a honra e o orgulho”.

Crise sem fim

O herói pertence a uma época de seres humanos que ainda conversavam com deuses e acreditavam neles, ou seja, é o personagem ideal para teocracias, mundos encantados, mágicos. A modernidade é outra história, porque fala em autonomia, consciência e liberdade de homens e mulheres. Desta forma, como fica o “desencantamento do mundo” de Max Weber? Seria de se esperar a morte e o enterro da ficção de um ser humano que se acha exemplar e moralmente superior aos outros.

Lendo sobre a origem dos super-heróis dos quadrinhos, descobrimos que o nascimento deles teve motivações prosaicas e utilitárias. Conta-se que a depressão econômica dos anos 1930 e a proximidade da nova guerra mundial provocaram a crise generalizada nos Estados Unidos, interpretada também como algo moral. Era preciso resgatar crenças e levantar o espírito da sociedade arrasada. Nesse contexto, surgiram as figuras do Super-Homem e do Batman — que dizem ser a fase de ouro dos super-heróis.

Bomba atômica

A literatura de Scott Fitzgerald e John Dos Passos mostrou o buraco em que os Estados Unidos haviam se metido nas décadas de 1920 e 1930. Foram representações do fracasso, da falência; em suma, um período que só poderia ter anti-heróis, seres humanos falhados, fragmentados e erráticos. Ao contrário disso, os quadrinhos da indústria da cultura vão construir a imagem de figuras inteiriças, com uma retidão ética e moral que nem os santos religiosos possuem e que a propaganda militar potencializa.

É contraditória a existência de uma figura que salva o planeta a cada edição de uma revista em quadrinhos, mas que foi criada pela cultura do país da bomba atômica. O que os Estados Unidos inauguram em Nagazaki e Hiroshima é a dupla imagem de garantidores da paz mundial e de quem é capaz de extinguir o ser humano da Terra. A “última razão dos reis” passou a ser um artefato que tinha a capacidade de acabar com a humanidade, o planeta, e que estava nas mãos de um único governo, o norte-americano.

Após a Segunda Guerra, o super-herói tornou-se personagem da Guerra Fria, na qual o Bem (o capitalismo) se opõe ao Mal (o comunismo). Chega a ser cômico que, a partir dos anos 1950, os ingleses tenham espalhado pelo mundo a figura de James Bond, o 007, o agente secreto a serviço da majestade de um império falido e obsoleto. Ele é um herói que mata os inimigos friamente e carrega boas doses de misoginia, mas ainda inunda as salas de cinema de tempos em tempos com suas peripécias sem sentido.

Renascimento

A explosão dos super-heróis no cinema recente coincide com a ideia de Fim da História dos anos 1990 — é minha hipótese. Após a queda do Muro de Berlim, os EUA tentam se colocar como a polícia global e ser uma espécie de guardião da ética a ser espalhada pelo mundo (democracia liberal, livre mercado). Ressurge a utopia kantiana da “paz perpétua”. Mas, na verdade, foi um período sem igual e que os norte-americanos mais fizeram guerras e invasões para defender uma suposta ordem no planeta.

Nunca se fez tanta guerra como nos governos Clinton, Bush e Obama. Coincidentemente, nunca houve tanto filme de super-herói produzido em Hollywood. Me contam que até o Homem de Ferro se envolveu na luta antiterrorista do pós-11 de setembro. O sistema de crenças do super-herói sobreviveu até o aparecimento do filme “Coringa” (2019), quando dá às caras o anti-super-herói. A figura eternizada por Joachim Phoenix é parida na era Donald Trump, que marca justamente o fim definitivo do Fim da História.

Os Estados Unidos de Trump abandonaram qualquer pretensão de ser o garantidor da lei, do moral e da ordem globais. A partir da época que foi lançado o “Coringa”, a doutrina americana voltou a ser o velho modelo do “cada por si e, nas discordâncias, resolvemos tudo na bala”. As virtudes da economia liberal dão lugar a uma cruzada em defesa de algo chamado de Civilização Ocidental ou de Ocidente-Cristão. Não há mais espaço para o super-herói da globalização dos 30 anos anteriores.

Made in Brazil

É nesse cenário que surge o super-herói brasileiro. Ele não saiu dos quadrinhos e foi materializado por José Padilha no filme “Tropa de Elite” (2007). Enfim, o personagem que se julga moralmente superior, acima do mal que campeia na sociedade. É ele que se apresenta e se acha capaz de resolver a crise da nação, por meio da apologia de execuções sumárias de “inimigos”. A lógica é o retorno da oposição amigo-inimigo de Carl Schmitt e que está expressa no título “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro”.

Não demorou para que surgisse outra variante brasileira do super-herói dos novos tempos. Ressalte-se que estamos nos anos de “salve-se quem puder” de Trump e seus admiradores. Trata-se do filme “O Doutrinador” (2018), adaptação de uma história em quadrinhos. A criatura de José Padilha (o personagem-mito Capitão Nascimento) começa, assim, a se reproduzir e é um dos sintomas mórbidos do “novo tempo brasileiro do mundo”, como dizem os filósofos locais. 

A sinopse do filme não deixa dúvidas do que se trata a “doutrinação” do super-herói brasileiro dos quadrinhos e do cinema: “Um vigilante mascarado surge para atacar a impunidade que permite que políticos e donos de empreiteiras enriqueçam às custas da miséria e do trabalho da população brasileira. A história do homem por trás do disfarce de Doutrinador envolve uma jornada pessoal de vingança na qual um agente traumatizado decide fazer justiça com as próprias mãos”.