A pena leve e profunda de Lygia Fagundes Telles

A pena leve e profunda de Lygia Fagundes Telles

Se na literatura brasileira o peso das palavras apareceu nos livros de Clarice Lispector, a leveza estava certamente na escrita de Lygia Fagundes Telles, que morreu neste começo de abril aos 98 anos de idade. Poucos escritores ou escritoras como Lygia conseguiram captar no Brasil a lógica das aparências, os jogos de ver que as pessoas fazem ao longo da vida para tirar proveito e mesmo para sobreviver. Estamos falando de uma família de autores brasileiros cujo mestre soberano foi Machado de Assis.

No título de um de seus melhores livros de contos (“A Estrutura da Bolha de Sabão”, de 1991), Lygia forneceu a senha para entender sua arte de fabular. A bolha é a figura plena de aparência, transparente, dando a ver a sua parte interna. Mas o que existe naquele ar (ou vazio) dentro dela? Como Machado, ela sabia a importância do aparente, visível e por isso mesmo insidioso. Lygia foi mestre em desvendar os seres, os lugares e as coisas que parecem não ter nada ou muito pouco no lado interior.

Basta tomar o caso do conto “O espartilho” no livro citado. O texto é uma das coisas mais perfeitas já escritas no Brasil, em termos de precisão, clareza e capacidade de elucidar o que ainda não conhecemos. A personagem Ana Luísa observa o belo álbum de fotos com as mulheres da família, todas “espartilhadas” pelo controle de sua avó e matriarca do clã. A peça de vestimenta é a metáfora do comportamento. Certo dia, a empregada Margarida se irrita com Ana e revela a parte interna (e feia) da “bolha familiar”.

A história de Ana se passa na época da Segunda Guerra Mundial. A avó segue à risca a mistura do período: era simpática a Adolf Hitler e reunia as amigas para tricotar e costurar roupas destinadas a asilos e orfanatos. É a fórmula machadiana revisitada: crueldade e caridade, paternalismo e exploração dos pobres. Nesse caldeirão no qual se reconhece uma matéria brasileira, o toque de Lygia é a pena leve que conduz o leitor à descoberta dos sentimentos mais estranhos de uma pessoa.

“A obra de Lygia Fagundes Telles realiza a excelência dentro das maneiras estabelecidas de narrar. Mas ela sabe fecundá-las graças ao encanto com que compõe, à capacidade de apreender a realidade pelos aspectos mais inesperados, traduzindo-a de modo harmonioso. Tanto no conto quanto no romance, tem realizado um trabalho ainda em pleno desenvolvimento, sempre válido e caracterizado pela serena mestria”, avaliou em 1987 o crítico Antonio Candido, ao fazer um balanço da literatura brasileira.

O encanto produzido por Lygia nos leitores apareceu já em seu primeiro romance, “Ciranda de pedra” (1954). A personagem Virgínia levanta o “tapete” da família para observar as sujeiras escondidas. A novidade estava na abordagem da vida interior dos personagens, incluindo suas alucinações e desejos. O livro foi um contraponto às tendências realistas muito presentes nas décadas anteriores, sobretudo o romance social. E, por parecer tão leve, esse livro denso já teve duas versões de telenovelas.

Segundo Walnice Nogueira Galvão, a escrita de Lygia pertence à linhagem de Machado de Assis, na combinação do tom crítico e velado. Ela não precisava gritar ou recorrer ao último modismo para parecer contemporânea. Também não cedeu ao canto de sereia do brutalismo dos anos 1970, quando a literatura brasileira deu respostas à urgência do período com o tom da denúncia política e social. A seu modo, Lygia retratou o tempo presente em seu clássico romance “As Meninas” (1973).

“Em suas mãos, a linguagem é um instrumento dócil, maleável, no brilho surdo do recato e da descrição. Recusou o chulo predominante da contemporaneidade, de que ela todavia não se esquiva quando estritamente necessário”, nota Walnice, no magnífico posfácio que escreveu para o livro de contos reunidos da autora em 2018 (editado pela Companhia das Letras). “Sua literatura é sussurro e não grito, é penumbra e não luz que cega, é monossilábica e não loquaz: é uma obra em surdina.”  

Na vida de Lygia, um capítulo relevante foi o casamento com o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes em 1963. Ele foi um dos maiores ensaístas que pensaram a cultura brasileira. Juntos, escreveram “Capitu”, uma adaptação de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, para o cinema. A vida de Paulo Emílio é por si só um romance ou filme de aventura, tendo a companheira do mesmo nível de inteligência. A ele, Lygia dedicou sua obra-prima “As Meninas”.