Apesar das teorias: violência do bem ainda é violência

Apesar das teorias: violência do bem ainda é violência

No começo deste século, quando as torres ainda estavam de pé e eu ainda era jovem, travei um debate com um jornalista que queria me convencer de que Fidel Castro nunca fez nada de errado por enviar pelo menos três mil e oitocentas pessoas (uma conta conservadora) para o paredão nas cinco décadas em que esteve no poder. O dedo em riste parecia falar mais alto que a boca: “É Revolução! Na Revolução tudo se justifica!”. Juro que via a primeira letra da Revolução em maiúsculo saindo dos lábios vaporosos, enquanto os pontos de exclamação me esbofeteavam por ousar fazer debique da causa.

Calei-me. As cerca de cem pessoas que El Chancho Che Guevara executou sumariamente em La Cabaña também se calaram. Mas eu fiquei bem, elas não.

E veja que, ao contrário de Fidel, Guevara assassinou suas vítimas (sim, assassinou, porque execução sem direito de defesa adequada não tem outro nome) no calor da Revolução, que acabara de se desenrolar. Mas mesmo assim era um homicida, por que não?

E o que dizer de Fidel, que continuou matando opositores nas décadas seguintes a 1959?

Sim, já conheço as respostas: as “vítimas” de Che eram capangas e torturadores da ditadura de Batista. E Fidel fez o que fez porque manter viva a chama da Revolução (!) era uma imposição do povo. Era bom para o povo!

Mas precisamos lembrar aos defensores de qualquer violência que, como diziam os antigos, “pau que bate em chico, bate em francisco”, ou, mais ou menos na linha do Capitão Nascimento, um mito violento do imaginário popular, “quem corrompe para o batalhão também corrompe para a família”.

E, de repente, você se pega achando bem feito que Chris Rock — não o que todo mundo odeia — mas o de verdade, de carne e osso, tenha tomado uma bofetada de Will Smith depois de uma piada vulgar e de péssimo gosto ao microfone da cerimônia do Oscar.

Repare: a piada foi ruim e desrespeitou uma condição pessoal que debilita aspectos fisiológicos da companheira do agressor. Mas ele, o agressor, não tem outro nome. Não agiu para se defender de uma agressão da mesma natureza, e sim deixou sua poltrona para, solenemente, subir ao palco e desferir um sonoro tapa (dizem que foi falso, encenado, mas quem se importa nesse momento?) de surpresa no comediante.

Isaac Newton já dizia que a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e de igual intensidade. Se na eternidade alguém defendesse junto a ele que a reação do (merecidamente) ganhador do Oscar pela representação de Mr. Richard Williams foi proporcional à ação anterior, o físico invocaria o lado depressivo de seu conhecido transporto bipolar para se isentar de comentar a metáfora.

Essa seletividade para condenar violências, típica da sociedade digital, tem que ser explicada.

Primeiro, é claro, ponho junto a Fidel e Che seus companheiros de polo político invertido aqui na América do Sul, que mataram e violentaram mais ou menos na mesma época e ainda encontram defensores da barbaridade. Sim, a violência do bem existe tanto na esquerda como na direita, e ela só tende a crescer, sempre que acharmos que, se a causa é boa, a agressão é legítima.

Claro, serei condenado pelas patrulhas de todas as colorações que se deixam seduzir pela causa e não medem as consequências de seus atos. Mas o ponto aqui não é a causa, entendam: o ponto são… as consequências.

Toda vez que relativizamos ou mesmo aplaudimos uma violência, quando ela é cometida por agentes ou causas pelos quais simpatizamos, revelamos um pouco da nossa face. É lógico que ninguém é santo, mas, depois de respirar fundo, raciocinar um pouquinho — nem precisa muito — e deixar o sangue se espalhar pelo corpo, dá pra lembrar: pau que dá em chico dá em francisco. Quem agride pelo bem também agride pelo mal. Quem agride o bom também agride o mau, com o perdão do trocadilho.

Toda vez que você aplaude um policial que desce a botina no bandido que já se entregou, você sorri para o diabo, pois é ele que vai soprar no ouvido do mesmo “meganha” que ele pode bater também no seu filho.

Sempre que você acha bonitinho um ator defender a honra da esposa vilipendiada por uma piada boba e leviana, através de uma reação violenta, você se esquece de que o impulso que move o punho é o mesmo que pode apertar um gatilho, ou cravar um punhal.

Não que eu seja da turma que faz passeata pela paz, ou mesmo daqueles que defendem a resignação de dar a outra face, tal como consta na orientação cristã de Lucas 6:29 — afinal, foi o mesmo Jesus que fez um chicote de cordas e expulsou os vendilhões do templo em João 2:13-25.

O que me chama a atenção é que muita gente é seduzida por teóricos e suas teses e, na defesa de tudo isso, deixa de enxergar as consequências dos atos, mesmo que eles sejam errados.

Há julgamentos morais que nos levam a achar que certas coisas são certas e outras são erradas. Muitas vezes nossos julgamentos morais coincidem com aquilo que é legal, jurídico. Outras vezes, não. Simplesmente supor que uma bofetada é merecida porque desferida após uma provocação não legaliza o ato.

Impor predileções simplesmente morais, por mais que estejamos acompanhados por um coletivo — ou por uma manada, como quiserem — não significa que a imposição é legítima, ou que quem discorda deva obedecer. Fazer o contrário vai nos afastar de todos os marcos civilizatórios que nos trouxeram até os estados democráticos em que vivemos.

Ou, em um português menos jurídico: de boas intenções o inferno está cheio. Guarde consigo sua túnica e seu cajado quando estiver em público; e deixe para pregar suas boas intenções quando estiver com seu rebanho. Mas não se esqueça: a túnica é feita para vestir e o cajado para tanger, não para chicotear e para bater.