Premiadíssimo, drama taiwanês que acaba de chegar à Netflix é um soco no estômago

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“Garota Americana” é mais um filme a corroborar a máxima celebrizada em “Anna Kariênina” (1878), romance do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), que reza que as famílias infelizes o são cada qual a sua maneira. A história, baseada num evento real, conta a desventura de Lily, que resolve voltar para Taiwan, seu país de origem, ao saber que tem um câncer de mama em estágio avançado. A performance de Karena Lam Ka-yan, dedicada no papel da típica heroína sofrida, segura o filme de estreia de Fiona Roan Feng-i até o final, mas é Caitlin Fang quem verdadeiramente brilha. Aos treze anos, Fang dá vida a Fen, filha mais velha de Lily, que também sofre, não pela agonia da mãe, mas por ter de se mudar dos Estados Unidos, a que chegou ainda muito pequena e a cuja cultura está totalmente integrada — da mesma forma que a mãe, muito à vontade com seu nome ocidental.

É esse contraponto entre o chororô de Lily e a determinação algo cruel de Fen que não permite que o filme de Feng-i resvale para o dramalhão ensaboado, ainda que o roteiro da diretora caminhe no fio do melodrama, pesando a mão em certos momentos. Não bastasse a referência a uma enfermidade incapacitante e mortal como o câncer — e de mama, o que deixa a autoestima de qualquer mulher na lona —, o texto de Feng-i também menciona o surto de SARS, a síndrome respiratória aguda grave, em 2003, argumento que se dilui ao longo de pouco mais de cem minutos de filme. Melhor seria ter dado preferência a outro núcleo conturbado, o do pai da protagonista, Huay, de Kaiser Chuang Kai-hsun, que tivera de permanecer em Taiwan, preservando o emprego, ao passo que se distanciava irremediavelmente da família. Resta claro que se tivesse podido contar com o apoio do marido, se ele tivesse ido para a América com a mulher e as filhas, Fen e Ann — interpretada com um misto de doçura e agressividade por Audrey Lin —, as coisas poderiam ter sido muito diferentes. A culpa desse homem vai sendo

elaborada com cuidado por Feng-i, entre uma e outra cena, mas nunca é esquadrinhada a fundo, dada a ubiquidade do conflito central, lamentavelmente. Presume-se que não tenha passado todo esse tempo sem companhias femininas, mas “Garota Americana” também não fomenta essa discussão.

Fen é obrigada a mudar de vida. Tendo de abdicar até de aspectos muito particulares, íntimos — como os cabelos compridos, proibidos na escola nova e, por essa razão, tosados —, a garota passa a alimentar um ressentimento invencível pela mãe, que vai sucumbindo ao câncer a olhos vistos. Não é só a conexão de internet, espantosamente lenta, ou a rigidez excessiva do colégio (e as sociedades orientais são famosas pelo ensino, impecável, mas conduzido por meio de métodos draconianos). Essa tensão incessante, evidentemente, não faz bem a nenhuma das duas e, por coincidência ou não, o câncer recrudesce um pouco mais e Lily fica à morte, malgrado para Fen, adolescente leviana como qualquer indivíduo nessa fase da vida, isso seja uma abstração complexa demais de se alcançar. Huay, pelo contrário, entende muito bem o drama por que sua mulher passa; contudo, no processo de negação que reflete a imensa dor pela sorte de Lily — e o desespero de se ver viúvo de repente, com duas filhas para criar —, também é incapaz de lhe prestar a assistência necessária.

A tragédia dessa família, captada de forma bastante próxima por Feng-i, transcende a incompreensão da protagonista — que demonstra traços de uma psicopatia em gestão, por seu desprezo pela condição da mãe parecer diligentemente cultivado. A personagem de Fang se esforça por nunca se permitir tornar-se vítima de um comportamento empático para com a mãe — qualquer coisa lhe importa mais que o destino dela, mesmo umas aulas de equitação que inventa, ousadia acertada do enredo. À medida que a história apara suas arestas e diz, efetivamente, a que veio, com uma reviravolta surpreendente envolvendo a filha caçula, “Garota Americana” se encaminha para um desfecho libertador, meio utópico, meio farsesco, em que as crises — nesse ínterim, o elemento narrativo conflituoso e os choques de interesses entre os personagens desdobram-se em diversos contos — ficam por serem resolvidas, apesar da ilusão de final feliz. Ao espectador, Fiona Roan Feng-i parece acenar com um estoicismo um tanto esgarçado, distendido que foi até o limite. A isso se dá o nome de esperança.


Filme: Garota Americana
Direção: Fiona Roan Feng-i
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10