Um quadro abstrato tem o poder de um romance

Um quadro abstrato tem o poder de um romance

Talvez você olhe para um quadro e pense: “Mas é só isso que tem para ver?”. Suponha que esteja visitando uma exposição de Mark Rothko e Josef Albers. No Brasil há pintores tão reducionistas quanto estes, porém menos conhecidos. Não é o que importa. O que importa é que tais obras podem ser apreendidas em um único golpe de vista: são repetições de um mesmo esquema básico. Os quadros em particular de Albers parecem ser cópias uns dos outros, mudando apenas de cores. No caso de um Franz Kline nem há mudança de cores: em sua melhor fase tudo é preto e branco, embora Kline seja menos previsível. O leigo em arte pode então entediar-se facilmente com essa arte de padrões, mas diferentemente é a reação de quem possui a informação necessária para compreender o que há por trás desta aparente “facilidade”. Gostar ou não é a primeira reação de qualquer indivíduo, mas a arte não é decoração para resumir-se a gosto. Exprime coisas bem importantes, por vezes bastante complexas. Épocas inteiras, por exemplo.

Mark Rothko | Foto: Wikimedia Commons

A analogia da pintura concreta com a música é a mais pertinente, pois assim como existem ouvidos educados existem olhos educados: os que permitem discernir Rothko e Albers (nossos exemplos) no emaranhado da arte contemporânea, e depois entender por que são muito bons. Então, o que é “arte contemporânea?”. Para nosso interesse imediato, basta dizer que é o momento da história da arte em que a representação do mundo exterior saiu de cena. É uma informação abrangente, mas esclarecedora. Rothko e Albers são expoentes deste período; constituem o ponto de chegada, cada qual à sua maneira, de um problema típico da arte dos contemporâneos: a concepção do espaço. Inúmeras gerações de artistas, desde Brunelleschi — criador da ilusão de profundidade, na renascença —, vem se debruçando sobre ele. Cézanne é o turning point deste processo secular, e o cubismo é o golpe de misericórdia. Para se ter um termo de comparação, é um problema muito distinto do de outra arte, a literatura.

Em um romance é impossível desvincular a arte dos personagens e da história humana contada. A história e as pessoas são uma espécie de “corpo estranho” no mundo da arte, que é por excelência o mundo das formas. Significa que na ficção, diferentemente da pintura concreta, há duas motivações, e não uma. Mas o leitor vocacionado sabe que quanto mais formalmente elaborado é um romance, mais interessante ele é, e mais prazeroso também. O estilo enxuto de Hemingway contrasta com o estilo espraiado de Proust, e cada qual nos atrai por causa dessas características. Prova disso é que se pode revisitar parágrafos inteiros desses autores com a única intenção de sentir prazer estético, independente da história contada. É o tipo de prazer que define a chamada “Alta Literatura”: a estética nos basta. Subtrai-se daí o quanto a forma realmente importante, inclusive para a ficção: é por causa da forma que um leitor qualificado não se contenta mais com romances medíocres, no qual a linguagem (independente da história) é apenas um lugar-comum, sempre igual. Apesar de ter criado a prosa realista, Gustave Flaubert é curiosamente o exemplo mais famoso de escritor obcecado pela forma, como seu contemporâneo e poeta Mallarmé o foi. Uma frase bem feita não é uma história, mas uma frase bem feita era tudo para Flaubert. Independente do gênero, a forma redonda é o supremo desafio do artista, e a boa ficção também depende da forma fechada em si mesma. Mas nem sequer “Finnegans Wake”, de Joyce, conseguiu ser 100% puro, porque a literatura, mesmo a mais radical, tem um limite que nem a música nem a pintura conhecem, até mais que a poesia.

Josef Albers | Foto: Wikimedia Commons

Diferentemente do ficcionista, o pintor não precisa de elementos estranhos à forma: em geral a pintura concreta (ou abstrata) prescinde de qualquer motivo exterior para existir. Não depende de pessoas circulando no quadro: depende apenas de linhas, cores, espaço, sem nada representar. Sim, a pintura pode contar uma história, como fazia Diego Rivera. Mas também pode ser um mundo autônomo, regido pelas próprias leis. Se fosse diamante conseguiria ser 100% puro. Neste sentido a pintura de Mark Rothko e Josef Albers é o estado ideal ensejado por Gustave Flaubert. Matisse ainda era figurativo e representativo, mas abriu espaço para as cores como nenhum outro. Se é verdade que tanto o universo das cores como o dos sons prescinde de uma história, também é verdade que não prescinde de um temperamento, porém. Caso contrário não seria obra humana e não teria o que ensinar sobre nós, para nós. É basicamente por esta razão que, apesar de parecer iguais (a falta de um “conteúdo”), Rothko e Albers são diferentes um do outro. São expressões de personalidades distintas: há pelo menos o vestígio do autor na obra, e é por esta razão que o porco pintor de uma granja sul-africana, Pigcasso, ou um robô, nunca farão arte. E de repente o que parece anódino e “sem sentido” revela-se: Albers é mais racional, Rothko é mais místico. Já Mondrian é a síntese dessas duas tendências.

Ícone da visualidade moderna, Mondrian constitui-se em boa medida de linhas pretas verticais e horizontais formando quadrados e retângulos de tamanhos irregulares, brancos e nas cores primárias. Essas são as únicas informações disponíveis nos seus quadros, mas elas constituem um achado e tanto: é a consequência lógica da revolução iniciada por Paul Cézanne, décadas antes. Existe nexo, ponto de início e de chegada, relação orgânica entre um extremo e outro. Não é um acaso, nem é decoração. Mais que nexo com a tradição, os quadros de Mondrian preenchem o observador imaginário como um tratado de filosofia sem palavras, apenas intuído. Porque, além de estarem organicamente integrados à cultura artística (falta isto a milhares de pseudoartistas), os quadros do holandês exprimem também, sem palavras, a visão de mundo de uma personalidade. Na solução elementar, Mondrian concilia a racionalidade da era industrial com o princípio dual da existência: o humano e o divino, a ascensão e queda, a matéria e a transcendência. Tão simples e tão completo: completo como um romance de primeira ordem. Nosso observador informado seria capaz de ficar olhando-o e olhando e olhando, sem jamais enjoar desse pensamento traduzido em síntese visual.

Enfim, você pode correr os olhos e virar as costas. Mas se tiver a informação necessária você vai se sentar no banco diante de um quadro concreto e contemplá-lo por mais tempo do que parece razoável, e eventualmente sentir-se satisfeito. Até em plenitude.