Forte e violento, filme na Netflix vai te deixar sem fôlego por 115 minutos

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Desde seu surgimento, no século 6 a.C., a filosofia tenta dar ao homem alguma explicação para as muitas inquietações da alma humana. Ao tentar compreender o que se passa no espírito de cada indivíduo, valorizando justamente o caráter de especificidade, em que cada um é responsável por suas próprias decisões, pelo caminho que decide trilhar — que por tortuoso que seja, pode conduzir a algum lugar de proveito —, por seus tropeços e suas glórias, o pensamento filosófico se organiza a fim de dar à vida uma ideia de que tudo converge para um mesmo fim, de que o tal sentido da vida consiste em extrair do mundo, da interação com os outros e, por óbvio, de como processamos essas informações à luz da nossa própria visão acerca da existência, a matéria-prima para seguir nossa jornada do modo menos traumático possível, para nós mesmos e para os outros. Injustamente tida por algo hermético, de difícil aplicação, dada a sua natureza calcada no conhecimento mais refinado, a filosofia se faz também no dia, uma vez que estamos sempre nos defrontando com circunstâncias provocativas, desafiadoras, que exigem de nós decisões rápidas, eficazes e, muitas vezes, definitivas.

“Os Infratores” (2012) é um filme sofisticado sobre gente boçal. Aqui, todo mundo tem alguma ligação com as mais diversas modalidades de crime, de extorsão a homicídio, passando por lesão corporal grave e, claro, o tráfico de bebidas alcoólicas, uma praga durante o tempo em que vigeu a Lei Seca nos Estados Unidos, entre 17 de janeiro de 1920 e 5 de dezembro de 1933, banida com uma canetada do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), acolhida pelo Congresso. A propósito, uma evidente consequência da extinção da medida — uma tentativa desesperada de dar freio a males colaterais da pobreza galopante que se avolumava desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como a violência doméstica e crimes de menor potencial ofensivo, como furtos e saques —, foi a queda vertiginosa no número de mortes em decorrência de beberagens fabricadas sem a menor observância de critérios de higiene, quando o que não havia mesmo era a simples desídia e os donos de alambiques clandestinos misturavam às preparações substâncias capazes de fazer a produção render, sem serem detectadas pelo consumidor, como a gasolina.

Tomando a história como base para seu filme, o australiano John Hillcoat fez um excelente trabalho em “Os Infratores”. Seis anos antes, “A Proposta”, igualmente de sua lavra, também falava de um trio de irmãos marginais que enfrentava um homem determinado a fazer com que a lei se cumprisse, e as coincidências não param por aí. Tanto em 2006 como em 2012, Hillcoat se valeu da parceria com o músico Nick Cave, autor dos dois roteiros, e com Guy Pearce, que rouba a cena nos dois enredos. Em “Os Infratores”, o diretor faz de seu malvado favorito um mocinho meio afetado — mas macho a valer — e dá a Tom Hardy, Jason Clarke e Shia LaBeouf os postos de personagens centrais, estabelecendo um interessante jogo por meio do qual esses tipos estão trocando seus papéis a todo instante. A trinca de brucutus composta, em grau decrescente, por Forrest, Howard e Jack Bondurant, que perto dos dois irmãos mais velhos não passa de uma mosca morta, se torna célebre ao desafiar (e corromper) as autoridades do condado de Franklin, no oeste da Virgínia, engarrafando e distribuindo destilados de milho e de maçã durante a Lei Seca. Tudo segue em ouro sobre azul, cada um tocando a parte do empreendimento que lhe cabe, até que o agente Charley Rakes, de Pearce, membro do FBI, chega para acabar com a festa.

Numa performance calculadamente elaborada para intrigar, Pearce incorpora Rakes envergando ternos bem cortados, penteado à Valentino, com os cabelos tingidos de um negro assustador e, o principal, destilando boas maneiras, inclusive com aqueles com quem sabe que terá problemas severos se estiver mesmo disposto a dar um fim aos desmandos dos Bondurant. Esse é o momento em que “Os Infratores” começa a crescer, com Pearce imprimindo a um dos anti-heróis mais enigmáticos do cinema um espírito altivo oculto por trás de uma figura que sabe como ninguém se adequar a aridez de seu novo hábitat.

Conforme a história se desenrola — e a estampa hipnótica de Guy Pearce deixa —, vão se fazendo notar as presenças de Jessica Chastain, excepcionalmente bonita, como a ex-dançarina Maggie, que deixou o glamour das boates de Chicago em busca de uma vida mais pacata e se decepciona fragorosamente. O envolvimento de Maggie com o personagem de Hardy, de cujo bar passa a tomar conta, tempera os longos intervalos narrativos da história, que nunca se arrasta. Jack, por seu turno, se encanta com a beleza exótica de Bertha, a ingênua filha do pastor local, de quem só se sente autoconfiante o suficiente para se aproximar depois que enriquece. A cena em que o personagem de LaBeouf vai atrás dela durante o culto denota a inocência de outros tempos, em que admirar os pés de uma moça era capaz de provocar reações incontroláveis num garoto introvertido.

A guerra que se sucede, não exatamente entre bem e mal, mas que opõe lados que disputam a primazia de um direito que não têm, dá a dimensão do ódio que só a sanha por poder, seja como for, é capaz de erigir. Em “Os Infratores”, mais um trabalho sobre as chagas sempre abertas da América, John Hillcoat traz à cena reflexões sobre a natureza belicista e armamentista dos Estados Unidos, bem como essa propensão que certo estrato da sociedade americana desenvolveu quanto a se arvorar em paladina da virtude. Se o grão de trigo não morre, nunca haverá de ser alimento.


Filme: Os Infratores
Direção: John Hillcoat
Ano: 2012
Gênero: Drama/Ação
Nota: 8/10